sábado, 15 de dezembro de 2007

A Problematicidade de Deus em Nietzsche

“Já ouviu falar daquele louco que acendeu uma lanterna numa manhã clara, correu para a praça do mercado e pôs-se a gritar incessantemente: “Eu procuro Deus! Eu procuro Deus!". Como muito dos que não acreditam em Deus estivessem justamente por ali naquele instante, ele provocou muita risadas... “Onde está Deus!”, ele gritava. “Eu devo dizer-lhes: nós o matamos – você e eu. Todos somos assassinos... Deus está morto. Deus continua morto. E nós o matamos...”

- (Friedrich Nietzsche, Gaia Ciência (1882), parte 125.)


Nietzsche, em seu filosofar, não pode ser identificado como um filósofo portador de um discurso periculoso e trágico. Pelo contrário, essa suposta carga negativista e pessimista que se verifica nos seus escritos, ressoam, em quase todas as suas abordagens, como um manifesto de reivindicação e de superação da condição existencial humana. Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche destaca a necessidade do anúncio do super-homem. Nele, Zaratustra, seu personagem principal, proclama a falência da civilização e a aurora de uma nova era. É o anúncio de que o homem deve superar a si mesmo, à sua potencialidade negada. Procurando sacudir o velho homem, que vivia enclausurado no seu pessimismo e ilusão, o novo pretende ser substituto daquele. O superar típico do super-homem, entendido como ato de abertura para o nada ou para o sagrado, nada mais é do que a própria vontade de poder. O super-homem como superação implica a dimensão do divino, que, segundo Nietzsche, seria um “ponto” na vontade de poder. Sendo assim, o divino não é uma coisa separada do homem, tampouco uma realidade para fora de si e que tem poder de manipulação, mas o divino e o humano se encontram no ato contínuo e ininterrupto de superação do objeto conhecido e, por conseguinte, na consciência do não-poder em relação ao não-objeto, isto é, ao nada (Penzo, 1999).

Desta forma, é revertida a concepção metafísica do conhecer como esperança e a de Deus como causa última de segurança. Para Nietzsche, a segurança na raiz metafísica leva o homem a experiênciar a convicção e a segurança, levando-o a ver Deus como objeto último de sua esperança, donde provêm a sua fé e a sua verdade absolutizada. Nessa linha, seria catastrófico para o homem, sedimentado em terreno metafísico, ouvir a proclamação da morte de Deus, pois ela acentua a natureza do medo e da dramaticidade existencial, visto que pensar na sua ausência assinalaria o declínio da esperança e o estabelecimento da incerteza. O anúncio da morte de Deus, portanto, não se trata de propagar idéias anti-teístas. Não pretende ser a disseminação do ateísmo. Mas em erigir um novo conceito sobre o homem e sobre Deus. A morte de Deus, para Nietzsche, representa o fim e o declínio da formulação do Deus que a metafísica clássica ocidental construiu: o de ser absoluto e supremo. Quer dizer que a idéia do Deus do cristianismo deveria morrer na consciência do ser humano enquanto mantenedor do sistema tradicional de valores. Como resultado disso, alguém deveria ocupar o seu lugar – o próprio homem.

No passado, o ser humano obedecia irrestritamente ao “farás” e “não farás”, da parte de Deus ou dos códigos doutrinais rigidamente patrocinados e construídos pela religião burocratizada. Para Nietzsche, esse ditos e sentenças estavam com os dias contados. Uma nova ordem de valores estava para ser estabelecida. O homem não mais podia se inclinar aos mandamentos divinos. Mas deveria ele mesmo conduzir os seus próprios desígnios. Somente ele é que poderá fazer as suas escolhas. E, acima de tudo, optar por uma delas, sejam elas boas ou más. É o que Nietzsche emblematicamente denomina de: “a transvalorização de todos os valores”. Os valores antigos e tradicionais caducaram. Esse arcaicos valores devem ceder espaço para o surgimento de novos valores. Não mais centrados em afirmações religiosas ou metafísicas. Mas redigidas e assinadas pelo próprio homem. Porém não é qualquer homem. Tem de ser um homem superior. Não o que prometa felicidade e gozo na transcendentalidade, mas concretamente, existencialmente. Este homem superior, portanto, é o Ubermensch, literalmente homem superior, passando a ser denominado também de super-homem. Entretanto, esse super-homem não tem qualquer conexão com o herói em quadrinhos.

Nas reflexões de Nietzsche, este homem superior era proveniente do desenvolvimento da humanidade num sentido darwinista. Ele aceitava as idéias de Darwin no que tange ao processo seletivo e natural da vida, no qual as espécies mais fracas são aniquiladas e as mais fortes sobrevivem para produzir espécies mais fortes ainda.

A teoria evolucionária de Darwin fundamenta e alimenta os pressupostos nietzschianos, sobretudo em relação ao homem superior. Porém, ele não pensou apenas numa nova raça desenvolvida nos níveis educacional ou espiritual que partisse do inferior para o superior. Ele tomou a idéia de Darwin literalmente. Pensava que o homem superior haveria de ser fisicamente mais forte. Deveria ter poder no soma [corpo] e na psique [alma]. Metaforicamente, deveria ser uma espécie de “besta-fera”, um centauro [metade gente, metade animal], bastante desenvolvido intelectualmente, não irracional, mas poderoso, representando, assim, uma nova formatação existencial completamente acima e superior do homem europeu massificado. O homem massificado evita a qualquer custo a controvérsia. É conformista, indiferentista e não têm preocupações supremas, acha a vida aborrecida e é cínico e vazio. É o que chama de niilismo (ex nihilo), para o qual a nossa cultura se dirige (Tillich). A bem da verdade, ao anunciar o super-homem como superação de si mesmo, Nietzsche sublinha e apresenta, em Assim falou Zaratustra, uma nova transcendência filosófica, pautada no nível existencial, na qual se abre o horizonte “nadificado” entendido positivamente, que se resolve como o horizonte do sagrado.

Assim, em seu pensamento sobre o sagrado, Nietzsche observa que a morte de Deus é um acontecimento cultural, existencial e extremamente necessário para purificar a face de Deus e, por conseqüência, a própria fé em Deus. Deste modo, Nietzsche não mata Deus. Mas limita-se a constatar a ausência do divino na cultura do seu tempo, acusando, pelo contrário, por essa ausência e morte, a teologia metafísica. Com base na rejeição da tese da fé-segurança, que a priori funda-se numa certeza típica da ciência, Nietzsche também crítica o espírito que levará a secularização inautêntica ou ao secularismo do cristianismo.

Logo, matar a Deus significa, noutras palavras, matar o “dogma”, o “conformismo”, a “superstição” e o “medo”, é não aceitar mais a imposição de regras cristalizadas, que impossibilitam a superação e a transcendência, além da auto-afirmação do ser humano, que luta incansavelmente para libertar-se elevar-se em sua saga existencializada.

Referências Bibliográficas

COPLESTON, Frederick S. J. Nietzsche: filósofo da cultura. Coleção Filosofia e Religião, Porto, Portugal, Livraria Tavares e Martins, 1953.

MARTON, Scarlett. Nietzsche. 4ª ed., In: Coleção Encanto Radical, São Paulo, Brasiliense, 1986.

PENZO, Giorgio. O divino como problematicidade. In: Deus na filosofia do século XX, São Paulo, Loyola, 1999.

TILLICH, Paul. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e XX. Trad. Jaci Maraschin, 2ª ed., São Paulo, ASTE, 1999.

[http://www.geocities.com/Athens/4539/deusestamorto.htm]

NIETZSCHE (1844 - 1900)

“Todo trabalho importante – deves ter sentido em ti mesmo – exerce uma influência moral. O esforço para concentrar uma determinada matéria e dar-lhe uma forma harmoniosa, eu o comparo a uma pedra atirada em nossa vida interior: o primeiro círculo é estreito, mas amplos se destacam”. (Carta de Nietzsche a Deussen.)

VIDA e OBRA

O século XX inaugura-se com morte de F. Nietzsche, que se revela como o seu pensador mais significativo. Sua vida é breve e solitária, embora mantenha sempre vivo um laço de afeto com a mãe e a irmã Elisabeth. Mesmo em sua solidão, ele se mantém em constante contato epistolar com alguns fiéis amigos e amigas.

1844 - Friedrich Wilhel Nietzsche, nasce em Rócken, na Prússia, no dia 15 de outubro. Seu pai e seus avós eram pastores protestante. Nietzsche pensou em seguir a mesma carreira.

1849 - Morre seu pai e seu irmão, em decorrência disso, sua mãe mudou-se com a família para Namburg.

1858 - Obtém uma bolsa de estudos, ingressando no Colégio Real de Pforta, local onde havia estudado o poeta Novales e o filósofo Fichte. Influenciado por alguns filósofos e professores, Nietzsche progressivamente começa a afastar-se do cristianismo. Exímio aluno em grego e nos estudos bíblicos além do alemão e latim, inclinou-se à leitura dos clássicos de Platão e Ésquilo.

1864 - Inicia a carreira acadêmica na Universidade de Bonn, on’de se dedicou aos estudos de filosofia e teologia, mas tarde acaba por abandonar a teologia.

1865 - Transfere-se para a Universidade de Leipziz onde sob a influência de seu professor Ritschl, eminente helenista, passa então a dedicar-se exaustivamente ao estudo da filologia clássica. Seguindo as pegadas de seu mestre, se debruçou na investigação de obras clássicas tais como: Homero, Diógenes Laércio (séc. II), Hesíodo (séc. VIII aC.). Nesta época entra em contato com as obras de Arthur Schopenhauer.

1867 - Incorporado ao serviço militar sofre um acidente de montaria e é dispensado, voltando a se dedicar aos estudos em Leipziz, onde consegue o cargo precoce de professor de Filologia Clássica na Universidade de Leipziz. Ainda em Leipziz, conhece Richard Wagner onde a notável influência deste homen o faz a dedicar-se a música e poesia. Nesta mesma época apaixona-se por Cosima, filha de Liszt que vem a ser a musa inspiradora de sua obra posterior a "Sonhada Ariane".

1869 - É nomeado professor de Filologia Clássica na Universidade de Basiléia, na Suíça. Todas as manhãs, de segunda a sábado, a partir das sete horas, dava cursos sobre Ésquilo e sobre a poesia lírica grega. Para um público numeroso faz palestras “Sobre a Personalidade de Homero”, “Sócrates e a Tragédia” e “O Drama Musical Grego”. Redige “A Visão Dionisíaca do Mundo”, primeiro capítulo de um ensaio que pretendia escrever sobre a “Origem e Finalidade da Tragédia”

1870 - Devido a guerra entre Alemanha e França é convocado ao serviço militar como enfermeiro, permanecendo por pouco tempo, pois adoece ao contrair difteria e dessinteria. Retorna a Basiléia a fim de prosseguir em seus cursos.

1871 - Acaba de redigir, O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música, publicado em janeiro de 1872.

1872 - Passa todo o ano imerso em ocupações: prepara os cursos para a Universidade, escreve e, de quando em quando, compõe. Redige, nessa época, um pequeno ensaio sobre “A Kusta de Homero” e dedica-se ao estudo dos filósofos pré-socráticos.

1873 - Redige "A Filosofia na Época Trágica dos Gregos" e "Introdução Teorética sobre Verdade e Mentira no Sendito Extra-Moral". David Strauss, o devoto e o escritor. Primeiras crises de saúde.

1874 - São editadas a Segunda Consideração Extemporânea: Da utilidade e Desvantagens da História para a Vida, e a Terceira: Schopenhauer educador.

1876 - Aparece a Quarta Consideração Extemporânea: Richard Wagner em Bayreuth.

1878 - Publica Humano, demasiado Humano.

1879 - Apresenta carta de demissão junto à Universidade de Basiléia, doente abraça uma vida errante, volta à cátedra e escreve mais 2 apêndices a Humano, demasiado Humano: Miscelânea de Opiniões e Sentenças e O andarilho e sua Sombra.

1880 - Nietzsche publica O Andarilho e sua sombra.

1881 - Publica Aurora - pensamentos sobre os preconceitos morais. Em Sils Maria, é atravessado pela visão do eterno retorno. Durante o verão reside em Hante, é nessa pequena aldeia de Silvaplana que durante um passeio, teve a intuição de O Eterno Retorno, redigido logo após. Em outubro de 1881 vai a Gênova, depois a Roma.

1882 - Aparece Gaia Ciência. Em abril, conheceu em Roma uma jovem russa chamada Lou Salomé. Sua presença de espírito e capacidade de escuta atraíram-no; seu ardor intelectual e desejo de vida seduziram-no. Aos trinta e sete anos, apaixonou-se. Embora o pedido de casamento tivesse sido recusado, uma afetuosa amizade nasceu entre eles. A família de Nietzsche interpôs-se: temia que uma ligação escandalosa viesse a macular sua reputação. Arrastado por sentimentos contraditórios, ele não sabia mais em quem confiar, rompendo com todos. Idéias de suicídio perseguiram-no; por três vezes, chegou a tomar uma quantidade abusiva de narcóticos. Retorna à Itália.

1883/5 - De volta à Alemanha escreve: Assim falou Zaratustra: Um Livro Para Todos e Para Ninguém.

1886 - Surge Para Além de Bem e Mal - prelúdio a uma filosofia do porvir. Escreve os prefácios ao primeiro e segundo volumes de Humano, demasiado Humano, O Nascimento da Tragédia, Aurora e A Gaia Ciência, assim como a quinta parte deste livro.

1887 - Redige "O Niilismo Europeu" e publica Para a Genealogia da Moral - um escrito polêmico em adendo a Para Além de Bem e Mal como complemento e ilustração. Instala-se em casa de sua mãe, em Naumburgo. Após a morte dela a irmã leva-o para sua residência em Weimar e ali ficaram a viver os dois.

1888 - Escreve O Caso Wagner, Crepúsculo dos Ídolos, O Anticristo, Ecce Homo e elabora Nietzsche contra Wagner e Ditirambos de Dioniso. Alguns de seus livros só foram editados depois de sua morte. Em vida financiou todas as suas obras. Neste período passa a escrever cartas estranhas aos amigos. Até então não havia sinal decisivo de loucura, tratava-se de uma doença orgânica do cérebro com caráter de paralisia, onde constatou-se a loucura psicológica.

1889 - Em Turim, no auge da sua enfermidade, passa a assinar as suas cartas ora como Dionísio, ora como o crucificado. Sendo internado nesta época, numa clínica psiquiátrica em Basiléia, com o diagnóstico de paralisia progressiva, provavelmente de origem sifilítica. É transferido para Jena.

1890 - Deixa a clínica de Jena sob a tutela da família.

1900 - Morre a 25 de agosto em Weimar, vitimado por uma pneumonia. A irmã refere à hora do seu passamento, precedido duma grande trovoada, o que a fez supor que ele patiria deste mundo entre relâmpagos e trovões. “Assim partiu Zaratrusta”Nietzsche foi sepultado em Röchen, e Peter Gast seu dedicado amigo, pronunciou um curto elogio fúnebre ‘a beira assim como para o seu Autor, a quem ele havia negado.

[http://existencialismo.sites.uol.com.br/nietzsche.htm]

POESIA DE NIETZSCHE

Ninguém pode construir em teu lugar


as pontes que precisarás passar,


para atravessar o rio da vida


- ninguém, exceto tu, só tu.


Existem, por certo, atalhos sem números,


e pontes, e semideuses que se oferecerão


para levar-te além do rio;


mas isso te custaria a tua própria pessoa;


tu te hipotecarias e te perderias.


Existe no mundo um único caminho


por onde só tu podes passar.


Onde leva? Não perguntes, segue-o

- Nietzsche -

NIETZSCHE TRAÇOS BIO-BIBLIOGRÁFICOS

Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) nasceu em Rocken, localidade próxima de Leipzig, Prússia, no dia 15 de outubro. Seu pai e seus avôs eram pastores protestantes. Nietzsche teve muito desse espírito religioso durante a infância, e cogitava continuar a linhagem. Sua mãe era piedosa e puritana. Em 1849 perdeu o pai e o irmão. Mudou-se então para Naumburg, cidade às margens do rio Saale, onde cresceu, em companhia feminina: a mãe, a irmã, duas tias e a avó. Era uma criança feliz, aluno exemplar, dócil e leal.

O zelo e mimo familiar fez com que ficasse um pouco deslocado, pois não gostava dos vizinhos, que armavam arapucas para passarinhos e bagunçavam. Preferia a calma do estudo, e os coleguinhas o chamavam de pequeno pastor, rejeitando maiores relações com ele. Lia a Bíblia, para si e para os outros. Na sua autobiografia, um de seus últimos livros, Ecce Homo – como chegar a ser o que é, conta que como seus colegas duvidavam de uma história dele, deixou alguns palitos de fósforos queimarem até o fim, na palma de sua mão. Em 1858, Nietzsche conseguiu uma bolsa de estudos na escola de Pforta, onde havia estudado filósofo romântico Fichte (1762-1814). Leu Schiller (1759- 1805) e Byron (1768-1824), escritor boêmio romântico que foi um dos gurus do romantismo. O Romantismo teve uma importância decisiva na juventude de Nietzsche, que mais tarde, na maturidade, criticou-o. Com essas leituras, e mais a influência de alguns professores, começou a se afastar do cristianismo. Estudou muito na adolescência: a bíblia, o latim, autores clássicos, grego e a cultura grega. Gostou muito de Platão (428-348 a.C.) e Ésquilo (525-456). Escreveu um trabalho escolar sobre Teógnis (século VI a. C).

Saindo de Pforta, partiu então para Bonn, onde estudou filosofia e teologia. Junto com seus colegas, Nietzsche teve um período de orgias sensuais, e arriscou atuar nas artes masculinas de fumar e beber, abandonando-as em seguida por considerá-las corruptoras da percepção e pensamento. Em 1867 é chamado para o serviço militar, mas teve um acidente quando montava a cavalo. Seus músculos peitorais se distendem. Seu professor preferido, Ritschl, de cultura grega, o persuadiu a mudar para Leipzig e se dedicar à filologia. Ritschl considerava a filologia o estudo das instituições e pensamentos, e não só o estudo das formas literárias. Seguindo o mestre, Nietzsche completou seus estudos brilhantemente em Leipzig, e realizou estudos sobre Homero, Diógenes Laércio (século III) e Hesíodo (século VIII a. C).

A partir desses estudos, conseguiu precocemente o cargo de professor de filologia clássica da Universidade de Leipzig. Tinha 24 anos, e se interessava por música e poesia. Queria viajar para Paris, mas o professor Ritschl, em 1869 lhe propôs o posto de professor e ele aceitou. Lá conheceu um dos únicos amigos cuja amizade durou até o fim, Overbeck, que era professor de teologia. Nietzsche ocupa-se com muito trabalho. Dá aulas sobre Ésquilo e palestras, como: "Sobre a personalidade de Homero", "O drama musical grego". Redige um texto, A origem e finalidade da tragédia. Alguns não concordam com Nietzsche, mas todos o consideram um jovem de futuro promissor.

Em 1870 ocorre a Guerra Franco Prussiana, passo importante para a unificação alemã. A Alemanha se industrializa, a exemplo da Inglaterra e França, que desde o século anterior passavam por processo de mecanização da produção. Otto von Bismarck, militar responsável pela unificação alemã, declara guerra à Prússia. Nietzsche participa da guerra como enfermeiro, mas logo adoece, com disenteria e difteria. Essa doença pode ser a origem dos problemas de saúde que o atormentaram por toda a vida. Recupera-se lentamente e volta para a Basiléia, afim de continuar suas atividades. Fica com a idéia de que o estado e a política são antagonistas.

Ocorre a guerra civil da França, e queimam-se os arquivos do museu do Louvre (Paris). Nietzsche fica desesperado, pois considera um crime contra a cultura. Conclui o primeiro livro, O nascimento da tragédia no espírito da música. Meditou sobre o assunto enquanto atuava como enfermeiro. O livro tem forte influência de Wagner (1813-1883) e Schopenhauer. Por volta de 1865, passava por uma livraria quando viu a reedição de um livro que não havia feito muito sucesso na época em que foi feito: O mundo como vontade e representação.

Encontrou nele um espelho no qual redescobriu a vida com uma natureza assustadora. Passa então, a realmente se interessar por filosofia. No livro está contida a idéia principal de que os atos dos seres vivos são fruto de uma cega vontade de viver. Admira-se com o seu ateísmo, e no Gaia Ciência chama Schopenhauer de "o primeiro filósofo assumidamente ateu". Schopenhauer diz que os meios de produção só são admiráveis quando podem ser adquiridos por qualquer homem, e que o aumento de custo, a falta de acesso, levam a uma centralização do poder negativa. Antes da guerra, em 1868, Nietzsche e Wagner se encontraram.

Nietzsche gostava de suas músicas, como Tristão e Isolda. Através de Brockhauss, um professor da universidade casado com a irmã de Wagner, se encontraram. Nietzsche passou a visitar Wagner em Tribschen, que não ficava longe da Basiléia. Caracterizou o lugar como seu lar e seu refúgio. Wagner era profundo conhecedor da filosofia de Schopenhauer. Em 1872 é publicado o Nascimento da tragédia, que começa falando do drama musical grego, onde o dionisíaco se opõe ao apolíneo. O Deus Dionísio, do vinho e da festa, levava, em seus cultos, à experimentação dramática da existência. Os homens experimentavam a exacerbação dos sentidos, a vertigem e o excesso nos cultos ao Dionísio, o Baco dos romanos. A palavra bacanal deriva dessas festas em homenagem a Baco. O dionisíaco, é como um apolíneo uma pulsão cósmica, só que de outro tipo. Nela, se aniquilam as fronteiras e limites habituais da existência cotidiana. É o prazer da ação, a inspiração, o instinto. A existência cotidiana e dionisíaca são separadas um do outro. Mas ao passar ao turbilhão perceptivo do culto a esse Deus, volta-se ao estado normal, deseja-se a vida ascética. Os Deuses gregos eram necessários para esse povo, diz Nietzsche, porque legitimavam a existência humana. Os homens viviam seus deuses, que mostravam a vida sob um olhar glorioso. Na tragédia grega, a platéia participava também , era artista. A tragédia se opõe a comédia. Nos cultos, o Deus se revela, mostrando o drama da individualização.

O livro de Nietzsche é o de um especialista em cultura grega, e sua mitologia. Transborda de lirismo. O apolíneo surge nas homenagens ao Deus Apolo. É o inverso de Dionísio, pois é o Deus da moderação e da individualidade, do lazer, do repouso, da emoção estética e do prazer intelectual. Esse Deus surge, na cultura grega depois de Dionísio. A arte grega retratava seus deuses, as pulsões cósmicas se manifestavam nas atividades. A arte grega era a união desses dois ideais, que se alternam. A música e o mito são inseparáveis na arte grega. O mito trágico expressava toda a crueldade do mundo dionisíaco. O coro é dionisíaco, e o diálogo, apolíneo.

O pessimismo estava presente na arte, pois os gregos conheciam a dureza da vida. Essa dureza leva à desilusão, que é vencida na arte. A complementação que existia nas experiências antagônicas do Dinosíaco e Apolíneo foi destruída pela civilização. A Grécia antes não separava o manual e o intelectual, o cidadão e político. A filosofia dos pré-socráticos é afirmadora da vida e da natureza, pois o pensamento está unido com esse fenômeno, a vida.

Mas Sócrates corrompeu essa atividade grega, com as suas teorias, realçou o lado frouxo do caráter ateniense e corrompeu a juventude. O caráter da filosofia passa a ser julgar a vida, humanizar a natureza, iluminar a escuridão do mundo com a luz tênue da razão. No lugar ao filósofo mediador, que recria os valores, surgiu o filósofo metafísico. Sócrates é o responsável pela divisão, na autoconsciência, do aparente e do real, no novo culto ao entendimento, ao dizer que nada sabia. Nas suas conversas e perambulações descobriu que os homens não tinham conhecimento seguro de suas atividades, não resistiam à sua dialética e à sua maiêutica, eles agiam apenas por instinto. O instinto passa, de força criadora, a ser crítico. Sócrates, teve que pagar por sua audácia, e sua serenidade diante da morte o tornou um exemplo e o novo ideal da juventude ateniense. Nietzsche também faz a crítica a Sócrates no livro O crepúsculo dos ídolos.

O mito dionisíaco, assim, desapareceu da Grécia, deixou de ser vivenciado pelos homens. A exaltação, encarnada na folia da orgia, e corroborada pela música deram lugar ao apreço civilizatório. Mas será que ele sumiu para sempre? Nietzsche reconhece em Wagner um Ésquilo moderno, que restaura os mitos instintivos, tornando a unir a música e drama em êxtase dionisíaco. É esse o caráter de sua música, segundo Nietzsche, que , junto com o povo alemão iria restaurar o mundo experimentado sob transe místico. A música é uma linguagem universal em alto grau. Todas as sensações humanas, seus esforços, seu interior, pode se refletir e exprimir pelas melodias. A razão lança isso no conceito negativo do sentimento, diz Nietzsche. E , continua segundo a doutrina de Schopenhauer, a música é expressão da vontade. O peso da existência é atenuado com estimulantes, e deles derivam a civilização. Pode ser socrática, artística ou trágica. Exemplos respectivos: a civilização alexandrina, helênica ou hindu. A característica da civilização socrática é o otimismo, que está escondido na lógica. Ao mito se sucedeu a clareza do conhecimento. Nietzsche foi músico amador, embora quisesse mais do que isso. Era bom pianista e suas composições musicais chegam a dar bom volume.

Wagner adorou o livro, dizendo que numa carta que suas palavras ainda não cobriam a grandeza do livro, pois eram insuficientes. Mas ele também provocou reações adversas, como a do helenista Mallendort. Pohden e Wagner respondem à crítica, que veio em forma de panfleto. Wagner gostava de Bakunin na juventude. Em 1872 Nietzsche voltou à Basiléia. Profere palestras. É polêmico, mas envolvente. Fala sobre a difusão da cultura na Alemanha. Defende a tese de que o ensino não deve ser apenas profissionalizante, mas capacitador do desenvolvimento das faculdades humanas. Desgostoso com o silêncio sobre o seu primeiro livro, se afunda no trabalho e na reflexão. Lhe vêm a idéia de que a filosofia é o médico da civilização. A filosofia deve ser crítica, não passiva. Redige uns pedaços de A filosofia na época trágica dos gregos.

Nietzsche não é um pensador sistemático. Não podemos fazer divisões rígidas de seu pensamento, e classificá-lo é difícil. Alguns estudiosos dividem suas obras em três fases:

Pessimismo Romântico - (1869-1876)
Influência de Wagner e Schopenhauer.

Positivismo Cético - (1876-1881). Período de rupturas.
Influência do moralismo francês. Critica o caráter demasiado humano da filosofia e defende a liberdade de espírito.

Período de Reconstrução
A fase de Zarathustra e da afirmação da vida.

Escreve um ensaio, Sobre verdade e mentira no sentido extra moral, no qual explora o lado gnosiológico, de origem e fundamentação do conhecimento. O conhecimento é uma ilusão, a única relação do homem com o mundo possível é a estética. O conhecimento típico do homem, que assimila o mundo à sua perspectiva. Existem os instrumentos do conhecimento (categorias e linguagem) e seu produto, o mundo percebido. Uma das perspectivas que aprecem em Nietzsche é noção de que o instinto da conservação da espécie é a responsável por muitos atos. O conhecimento é útil à preservação da vida, e é também o objetivo de todos os líderes religiosos.

O conhecimento não é transcendente, o homem é criador de seus valores. O homem interpreta e dá um sentido humano às coisas, o resultado é o mundo articulado. O conhecimento foi inventado em um minuto, em relação aos cosmos, pelo homem. Foi um minuto mentiroso. A verdade é procurada para ser válida e comum e a linguagem dá as primeiras leis da verdade. A verdade e a mentira seriam relativas, válidas para o ponto de vista humano.

No processo de antropomorfização do mundo, o reduzimos e generalizamos. Por exemplo, ao estereotiparmos folha, ignoramos qual folha é verdadeira e válida. Não existe na natureza a folha, elas são bilhões. Nietzsche observa os humanos de longe, e não o considera um ser privilegiado. Um dos pontos principais de sua obra é a crítica aos valores judaico-cristãos. O homem não é divino. Necessita sobreviver e dominar, na história estão presentes a vontade de poder, de dominar. O destino de um homem não é tanto assim, afinal, o sistema solar é apenas um ponto. O homem se apega à mentira do conhecimento como se sua filosofia ou ciência explicasse realmente o mistério cósmico. São invenções o conhecimento, a moral e a metafísica. No século XVIII caíram as teorias de origem divina do homem. Mas existe o idealismo metafísico, o homem é divino, a Terra é escolhida. Para Nietzsche, o homem está sem Deus, sem causa transcendente. O conhecimento é ativo e submisso à vida. O mundo que tem valor é o que criamos ao perceber. Nossas verdades são ilusão.

Para crescer em potência, uma espécie deve moldar sua concepção de realidade e comportamento em leis invariáveis e elementos previsíveis. Nos filósofos anteriores a Nietzsche, os órgãos de conhecimento eram de origem incondicionada ou transcendente. Para Nietzsche, a capacidade espiritual do homem tem um contexto natural e social.

Kant havia dito que só podemos conhecer fenômenos, e não coisas-em-si. Nietzsche aceita essa posição. Ele vai contra o racionalismo enquanto instrumento da verdade, e contra o empirismo, baseado na coisa dada e apreensão dos fatos.

Para Nietzsche, a verdade se tornou uma multidão de metáforas e metonímias, ou seja, relações humanas. Mas elas parecem objetivas e incriadas. O homem só conhece o efeito das leis da natureza, e não elas mesmas. A atividade do conhecer é um meio de se atingir a potência. Para se contrapor à ilusão em que vivemos, devemos desenvolver uma força artística. O mundo que percebemos é uma obra de arte dos sentidos e do intelecto. Da concepção de conhecimento deriva a noção kantiana do conhecimento com atividade constituinte e legisladora. Nietzsche é contra a humanização do mundo.

A objetividade, para o homem, é uma função prática da subjetividade. A essência se torna sentido, e o sentido é uma força ou valor. Esse livro, Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, é sobre verdade e linguagem. A palavra não é mais do que uma representação sonora de uma excitação cerebral. Nietzsche chega à velha verdade: existe um abismo entre a sensação e a linguagem. com a vida gregária, vem designação obrigatória e verdadeira das coisas. Assim surge a verdade, de caráter social , convencional.

Nietzsche criticou David Strauss, num ensaio que obteve aceitação, dentre outros, do hegeliano de esquerda Bruno Bauer.

Nos Ensaios das Considerações Extemporâneas, livro de caráter polêmico, critica o historicismo, e as Universidades. Diz que o Estado não protege nunca homens como Schopenhauer e Platão, pois tem medo deles. É acusado de megalomania.

Nietzsche sempre foi um defensor do virtuosismo, bem como do espírito guerreiro. Diz que toda a arte e filosofia são um meio para a vida que cresce. Os homens grandes sofrem. Os sofredores são de dois tipos: os de abundância de vida, que querem uma arte dionisíaca, e os que sofrem de empobrecimento de vida. Os românticos são da última categoria. Cita como exemplo de românticos desse tipo Wagner e Schopenhauer, seus ídolos da mocidade, quando já estava maduro, na Gaia Ciência.

Em 1872, Nietzsche freqüenta assiduamente a casa de Wagner. Wagner, e sua mulher Cosima lhe tratam com respeito. Nietzsche tem uma paixão contida por Cosima. Wagner se muda e eles começam a se afastar. Nietzsche começa a se isolar. Em 1876, vai assistir a tetralogia, O anel dos Nibelungos, de Wagner, que andava fazendo muito sucesso e deixara-se embriagar com isso. Nietzsche se irrita com o caráter burguês da obra e pela nivelação da sociedade medíocre, que grosseiramente se entusiasmava pela música. " aguardo com terror o fim dessas noites, não agüento mais." Desiludido, vai para Bayreuth. O Parsifal, de Wagner, é uma exaltação ao cristianismo e à santidade. Mais tarde, critica Wagner em muitos aspectos, em o Caso Wagner. Começa a sofrer de saúde. Paul Reé, um médico, vem lhe prestar auxílio. Paul publicara em 1875 Observações psicológicas e se preparava para o segundo livro.

Em novembro de 1876 Nietzsche e Wagner convivem pela última vez. Na Gaia ciência, fala que eles tiveram uma amizade astros, mas como dois navios com objetivos próprios, partiram para mares e sóis diferentes.

Nietzsche vai para Sorrento, numa estada proveitosa. Volta para a Basiléia e à universidade, a saúde piora. Em maio de 1878 lança Humano, Demasiado Humano, numa crítica aos valores. Seguem-se opiniões negativas e positivas. Wagner, Rohde e Malwida ficam embaraçados, contra. Outros, como Overbeck, Rée e Gast elogiam o livro. Bruno Bauer o elogia, mais tarde. O livro é lançado em comemoração ao centenário da morte de Voltaire, em 1879, Nietzsche se aposenta da faculdade e ganha uma bolsa de 400 francos anuais por serviços prestados à cultura.

A Basiléia foi seu lar durante dez anos. Lá viveu, fez amigos, trabalhou, sempre criticando o vazio de muitos eruditos. Freqüentara a vida acadêmica. Passou, então, a ter uma vida errante. Em 1870, sua saúde piora de vez, ele fica à beira da morte. Crises graves e ininterruptas durante meses. Restabelecido, mas não totalmente, viaja pela Europa: Suíça, Itália, França e Alemanha. Numa linguagem mais amena, mas não menos crítica, escreve com todo o seu ser, Suas Verdades são Sangrentas. Ignora o que sejam verdades espirituais. Em 1880 publica O andarilho e sua sombra. ". Em 1885 escreve um livro que é de um homem culto do século XIX, opinando sobre diversos assuntos em pequenas sessões. Faz crítica literária, artística, filosófica e até política. Vê a juventude com outros olhos. O jovem é um barril de pólvora , que pode se inflamar em torno de qualquer ideologia. Nesse sentido, acha o hegelianismo perigoso. A obediência aos costumes é moralidade. Os fracos governam, pois associaram-se e recriminam os fortes.

O que é proveitoso constitui o valor. O homem é o criador de valores, mas se esquece de sua criação. A moralidade é o instinto gregário do indivíduo. Quem é punido é quem pratica os atos. Na sociedade, existem os instintos de rebanho. Atribuem-se às palavras um sentido fixo e acha que ela espelha a realidade, que tem caráter transitório. O homem chega, pelos costumes, à convicção de que é preciso obedecer. No inverso disso, existe o prazer, a autodeterminação e a liberdade de vontade.

O espírito livre revolta-se contra a crença. Para libertar-se, é preciso um longo processo de abandono de hábitos e comodidades.

Nietzsche não era racional, depois passou a criticar a teologia e elogiar um pouco a ciência. Mas ela está carregada de antropomorfismos. A parte positiva é que ela se livrou do além, da vida após a morte. Escapou das crenças, mas não da crença da verdade. Nietzsche diz que os homens de ciência não têm espíritos livres. A interpretação científica não é única. No inverno de Gênova, vê a obra musical Carmen, de Bizet. Sente-se arrebatado e transportado. É um retorno à vida, depois de estar de caras com a morte.

No final de abril de 1882, Nietzsche chega à Roma. Viajou em um cargueiro. Sua vida amorosa não foi das melhores. Foi recusado no pedido de casamento duas vezes. Conheceu, através de um amigo, duas jovens de origem russa, em 1876. Pediu em casamento a mais velha (eram irmã), que mais tarde se casou com Hugo. Em julho de 1876 encontrou uma francesa, Louise Ott.

Na Sicília, Paul Rée e Malwida lhe escrevem, pedindo que conheça uma moça, Louise von Salomé, que russa, viajava pela Itália com a mãe. Era muito inteligente e tinha uma personalidade liberada, com comportamento e espírito idem. Ela se relaciona com Nietzsche, mas também gosta de Rilke e admira Freud. Em Roma se conheceram, e Nietzsche se apaixonou. Vão para a Suíça com Rée. Querem ter uma vida cultural, com muitas pesquisas em um grande centro, num projeto que chamas de Santa Trindade. Nietzsche pede Lou em casamento e obtém nova recusa. Ela escreveu um livro sobre Nietzsche, em 1894. O trio se separa. Depois, voltam a ficar algumas semanas juntos. Nietzsche quer fazer de Lou uma discípula que continue seu pensamento.

A família de Nietzsche é contra sua paixão. Seu comportamento é liberado demais: vive com dois homens sem ser casada. E Lou acabou ficando com Rée em Berlim por cinco anos. Rée foi assassinado em 1904, depois de praticar sodomia. Lou se casou com Carl Andréas.

Em Silas Maria, Surlei, Nietzsche tem a visão do eterno retorno, teoria que colocará em sua obra prima, Assim Falava Zarathustra. A energia e a matéria do universo são finitas, e ele está sempre em fluxo, de modo que, no futuro, as coisas voltam. Cada instante traz a marca da eternidade, e volta a acontecer um número infinito de vezes. As civilizações voltarão, até mesmo Nietzsche voltará. O universo é animado por um movimento circular sem fim. Passa de um frescor para desenvolver-se e chegar ao ápice, e renasce, como Phoenix, de si mesmo. A soma de energia permanece igual no universo. Apesar disso, Nietzsche condenava a crença na vida após a morte. Para ele o homem havia sido preso pela suas crenças, inventadas e colocadas acima do real. Não devemos nos voltar para o além e o eterno, pois essas mistificações reduzem o homem à condição de servo e destrói as fontes mais profundas da vida. No lugar dessas crenças, devemos reconhecer em nós e na história a Vontade de Potência, de poder. Na teoria do eterno retorno, o mundo se alterna na criação e destruição, alegria e sofrimento, bem e mal. Em Zarathustra, Nietzsche é um defensor do virtuosismo, virilidade, contatos rústicos com a natureza e espírito guerreiro.

Como explica em um poema, Nietzsche estava num jardim, no inverno de Rapallo, esperando e meditando além do bem e do mal, quando "um se fez dois, e Zarathustra passou por mim". Nada tem a ver com o Zarathustra persa. Quando Nietzsche terminou a primeira parte de Zarathustra, Wagner morreu (sua última música foi Parsifal).Terminou o livro em 1885. Em 1888, Nietzsche escreve o Nietzsche contra Wagner, que junto com o Caso Wagner, constitui a justificativa teórica, exorcista, das suas desavenças com Wagner. Nietzsche o critica a torto e a direito, e é famosa a frase em que diz: "Wagner acaricia cada instinto budista e embeleza-o com a música; acaricia toda a forma de cristianismo e toda a forma de decadência".

Nietzsche reconhece em Wagner o pessimismo, influência de Schopenhauer, e estava em uma fase de afirmação do lado positivo da vida. Foi muito difícil editar Assim falava Zarathustra, "um livro para todos e para ninguém". Como em muitas edições de seus livros, Nietzsche pagou do próprio bolso a última parte da obra- foi uma tiragem de quarenta exemplares, mas não tinha para quem mandá-lo, pois estava sem amigos, e enviou-o para sete pessoas. Overbeck lhe manda livros de vez em quando, pois sabia que Nietzsche estava em dificuldades financeiras.

Nietzsche começa a redigir Além do bem e do mal. É o livro pós-Zarathustra, sobre o qual disse: "é incompreensível, pois remete a experiências só minhas, e eu não encontro companhia nem entre os vivos, nem entre os mortos". Nietzsche faz prefácios para edições anteriores de seus trabalhos e redige a última parte de A Gaia Ciência. Leu Dostoievsky, e adorou sua psicologia, que põe em personagens. O próprio Nietzsche via em si e em sua filosofia uma fonte para muitos psicólogos, que ele considerava terem muito a evoluir. Escreve Para uma genealogia da moral, que complementa e ilustra Para além do bem e do mal. Nietzsche vê As Origens e motivos que fizeram o homem viver de acordo com a mentira da moral, que serve aos fracos. Escreve um adendo para o Além do bem e do mal.

Em 1889, começa a pirar. Saindo do seu quarto de pensão, vê um cocheiro açoitando seu cavalo. Precipita-se entre o animal e o açoite e perde os sentidos. Ficou desmaiado dois dias. Quando Overbeck vai visitá-lo, está louco. Diz que é o sucessor do Deus morto e o bufão da eternidade. Escreveu cartas para muitas pessoas, assinando como Dionísio, e o crucificado. Nietzsche sofria da saúde então. Não conseguindo tratamento adequado, se tornara seu próprio médico. Tomava drogas como o ópio, haxixe (principalmente) e cloral.

Escreve a primeira parte de seu projeto A vontade de potência, O anticristo. Escreve Ditirambos de Dionísio. Escreve Ecce como. Os ditirambos são poemas, Nietzsche gostava de poesia, admirava Goethe e sua sabedoria. No anticristo, continua seu ataque à moral cristã, como força inimiga da vida, restringidora da vontade de potência , e cuja influência apolínea desvirtuou a humanidade.

Nietzsche é internado na Basiléia. Sua mãe foi contra. O diagnóstico é paralisia cerebral progressiva, causada possivelmente pelo uso de drogas e tendo como agravante sua saúde precária. Nietzsche fica dócil e seus amigos duvidam de sua loucura. Nas visitas, revela boas memórias.

A irmã de Nietzsche, Elizabeth Foster, volta do Paraguai, depois da morte do marido anti semita, que Nietzsche não gostava. Depois de uma luta judicial, consegue a responsabilidade pelos escritos do irmão, e passa a manipulá-los. Eles tiveram uma relação incestuosa. Ela Publica A Vontade de potência, não de acordo com a vontade do autor, mas uma coletânea de anotações e aforismos. Os livros de Nietzsche fazem sucesso na virada do século, ele obtém reconhecimento, e seus livros dão dinheiro. Mas não adiantava mais, era tarde. No hospício, Nietzsche escreve Minha irmã e eu. Morre em agosto de 1900. Sua irmã ainda manipulou seus escritos a favor do fascismo, era admiradora de Mussolini. Sua teoria do super-homem foi adaptada para servir ao arianismo.

Nietzsche critica Kant, ora contra ora a favor. Diz que sua sabedoria era imensa. Que era um cristão pérfido, insidioso. Devemos a Kant um avanço metafísico, o de não crer mais na possibilidade de conhecer um além - mundo. Ele se orgulhava de seu avanço, o de ter descoberto os juízos sintéticos a priori (antes da experiência), sendo possíveis graças a uma faculdade. Mas Nietzsche diz que não temos de acreditar em tais juízos, no seu valor prático, mas nos perguntar como eles são possíveis. Porque preferir sempre a verdade? Ela nem mesmo é fixa e inalterável. Nietzsche é adepto do perspectivismo, a pessoa enxerga o mundo de acordo com sua perspectiva sócio-cultural. A partir do sujeito, o sujeito não pode ser pensado, só vivido, sempre a entender e a interpretar. Nietzsche o chama de "o velho Kant, o grande chinês de Köninsberg. Os sistemas filosóficos exemplares de Kant e Hegel têm colocado fórmulas e valorações nos campos em que atuam.

Para Nietzsche, Hegel e Schopenhauer se colocaram contra bestial mecanização do mundo. Embora voltados para a modernidade, não faziam do racionalismo algo reducionista. Assim também acontece com Goethe, que Nietzsche não critica, diz que ele inspira respeito. Nietzsche, inicialmente via no povo alemão uma força dionisíaca capaz de afastar a monotonia apolínea instaurada na Europa. Mas depois critica os alemães em diversos pontos. Diz que depois de dominar o espírito, se entediam com ele. Esse povo embruteceu com o cristianismo e o álcool. O essencial de sua cultura superior está perdido. Nietzsche reagiu contra o historicismo de Hegel, que justifica as ações dos homens de acordo com o espírito e com o absoluto.

No Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche analisa como Sócrates conseguiu penetrar no coração dos nobres atenienses. Tocava no instinto de combate grego e era um erótico. Assim, conseguiu se sobressair, apesar de ser feio. Então ele afastou as mitificações que exploravam o lado obscuro da natureza, que só podia ser sentido, vivido, e não pensado. Afastou-o com a luz da razão, que elevou à categoria de tirana. Para Nietzsche, a verdade e a falsidade não mais existem, mas sim sinais, o homem está destinado à multiplicidade, pois tudo é interpretação.

Nietzsche condena a noção que se encontra na cultura de muitos povos, que explicam tudo sob a luz racional e terceirizam para um além mundo o que não se encaixa. Assim, a razão é considerada como divina, pois seu estado de clareza leva a um falso bem estar. A natureza, para Nietzsche , está além das concepções humanas de entendimento. Essa mesma natureza devia ser experimentada de acordo com o espírito guerreiro, temos de viver em estado de guerra, e resistir aos apelos supra terrenos. Ele criticou a metafísica, que colocava o mundo como reflexo diminuído de algo transcendente. A recompensa para o sofrimento dessa vida, segundo o cristianismo, está no além. O cristianismo é um vale de lágrimas. São os escravos e vencidos, ou seja os que não podiam experimentar esse mundo com o virtuosismo que ele merece, que fizeram a moral dos fracos, inventando o além. Para recuperar o lado positivo da vida, é necessário uma transmutação de todos os valores, uma revigoração da cultura judaico-cristã. No processo de transformação, teríamos de lutar contra os erros sob os quais fomos criados, como o ressentimento (é tua culpa se sou fraco), a consciência de culpa e o ideal ascético.

Mas sua tarefa é solitária. Toda a civilização é produto de bases falsas, os eruditos são os que têm maior responsabilidade para lutar contra esse defeito, e questionar os próprios princípios. A cultura encontra-se em decadência, como resultado do afastamento da força da vida, tão escassa no universo. Nietzsche se afastou, ao enxergar a verdade cada vez mais longe. Mas pagou sua dívida por esse afastamento ao criar seu herói solitário, Zarathustra, um questionador da cultura e civilização, bem como da moral e valores sobre o qual ela se apóia. A tarefa de conscientização de Zarathustra não é fácil, ele encontra a ignorância do "populacho" em um tempo não definido. Zarathustra é o personagem principal de um romance filosófico-poético. Com trinta anos, sobe à montanha para escapar dos males das relações humanas e adquirir conhecimento da natureza. Vive em exposição aos elementos naturais, e junto aos seus animais (uma águia e uma serpente). Lá vive por dez anos, até saciar de seu conhecimento como abelha que produz muito mel, e parte para o convívio humano. A narrativa é pouca, o que preenche o livro são os discursos de Zarathustra. Ao descer encontra um velho e depois de dialogar se interroga: "será possível que este homem santo não saiba que deus morreu?"

Nietzsche já havia feito essa afirmação na Gaia ciência, e desenvolve com Zarathustra. Os Deuses morreram de tanto rir, ao ouvir a afirmação de que só existe um Deus. Nietzsche pretende colocar com essa afirmação que a civilização racional afastou as interpretações místicas do mundo, prevalecendo na Terra, o senso comum, e nele não há lugar para Deus, pois o homem não pode suportar não ser Deus, e, portanto, Ele não existe. A ignorância do dogmatismo faz com que acreditemos em coisas absurdas. Pelo fato de não podermos explicar, colocamos nossas esperanças no fim das frustrações no além.

Para substituir a divindade morta, Nietzsche sugere o super-homem: o bom senso da Terra. O que há de nobre do homem é ser ele um fim, e não um meio. O super-homem é a ponte, é ele o raio. O homem é algo que será superado. Ele é o resultado da vontade de potência exercida, um paradigma da virilidade e virtuosismo. Se coloca além do bem e do mal, e fez seus valores em pedaços. O povo ri do discurso de Zarathustra, que resolve não pregar mais em praças.

Ao longo do livro Zarathustra viaja e expõe sua doutrina sobre assuntos diversos, adquirindo alguns discípulos. Os poetas mentem em demasia, Zarathustra expõe a verdade. É um apoio à margem do rio, mas não uma muleta. Por trás de toda a moralidade existe a vontade de poder. O homem deve exercer o poder da vida, de modo a servir de solo ao super-homem. A moral é uma força contrária à natureza. Para chegar ao super-homem, Nietzsche não descarta a eugenia, a procriação para fins de superação. Passa-se o sangue e a alma para o filho, que continua as obras. O sangue é espírito também. A educação deve enobrecer o espírito humano, e não restringi-lo. Uma vida viajante faz com que não nos prendamos em rotinas, tem que se viver em estado de alerta, como guerreiro. Zarathustra só poderia crer num Deus que dança, pois todos os dias em que não há danças estão perdidos. Zarathustra critica o Estado, pois ele não representa o povo. Tudo nele é falso, diz Zarathustra. O homem deu valores às coisas afim da autoconservação, um valor humano, inadequado. A humanidade não existe, pois é uma abstração.

Os sábios servem o povo e a superstição, não a verdade. Ela está onde o povo está. Zarathustra conversa com a vida e com os animais, que chegam a cuidar dele em sua época de doença e delírio. A vida lhe confia um segredo: "Olhe, eu sou o que deve ser superior a si mesmo".

Zarathustra crítica os estultos e ama a liberdade. É o último dos sábios, e conhece a arte da retórica. Zarathustra parte em busca de novos horizontes, Primeiro vai para as ilhas bem aventuradas, depois se aventura para além do oceano. Passa pela cidade dos tolos, escorraça-os. Encontra aquele que matou Deus, sempre em busca do homem superior. Mas volta para a terra onde morava, quer retornar à sua gruta. Ouve o grito do homem superior, e no caminha encontra diversas personagens: os reis, o viajante, o homem mais feio, o mendigo. Convida-os tanto para um jantar em sua gruta, onde se dá a ação final. Lá há espaço e comida para todos. Zarathustra consegue o reconhecimento desses homens, com seu pensamento, que de modo crítico, coloca a arte e poesia como força criadora e de vida, o único valor possível.

Os outros livros de Nietzsche são influenciados pelo o de Zarathustra. Nietzsche se superou, como pensador da cultura e artista. Sua influência na filosofia posterior é grande, como em Deleuze, Heidegger e Foucault. Depois da segunda guerra, houve uma retomada da interpretação de sua filosofia, em sua acepção original, não deturpada. Fez a crítica da modernidade, e seu bravo peito desbravou os horizontes possíveis com o artifício da linguagem, e não cedeu diante as adversidades, em sua vida incomum. Influenciou também os existencialistas e os psicólogos. Além de músico, poeta filólogo e filósofo, foi um grande escritor. Suas obras têm um tom profundo e coeso, como em Platão.


Este texto, com pequeníssimas modificações, foi cedido pelo
webmaster da "
Consciência Home Page", naquela
página você pode encontrar tudo sobre os grandes filósofos de todos os tempos.
Recomendo enfaticamente!!!


[http://www.culturabrasil.pro.br/nietzsche.htm]

Professor explica por que ler Nietzsche

da Folha Online
03/03/2007 - 19h57
Um breve e abrangente livro sobre Nietzsche, pensador que refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna, sobre as perplexidades, os desafios, as vertigens do fim do século 19. É o que o leitor encontra no volume da coleção "Folha Explica" sobre o autor --o primeiro capítulo de "Nietzsche" pode ser lido abaixo.
No livro, Oswaldo Giacóia Junior mostra porque é impossível se colocar à altura dos principais temas e questões do nosso tempo sem entender o pensamento de Nietzsche, um dos pensadores mais provocativos da filosofia moderna.
Para Giacóia Junior, o impacto da filosofia de Nietzsche "advém de sua extraordinária clarividência". "Ele pressentiu, em estado de gestação, as ameaças mais fatais de nosso tempo. Anteviu o panorama sombrio que poderia advir do projeto sociopolítico de uma sociedade de massas. Nietzsche profetizou que a sociedade ocidental caminhava, desde então, para um nivelamento por baixo", explica o autor.
Oswaldo Giacóia Júnior é professor de filosofia na Unicamp. Formado em Direito pela USP, Giacóia é mestre em Filosofia pela PUC-SP e doutor em Filosofia pela Freie Uinversität Berlin (Alemanha). Além de "Nietzsche", Giacóia é autor de "Pequeno Dicionário de Filosofia Contemporânea", "Os Labirintos da Alma" (1997), "Nietzsche & Para Além de Bem e Mal" (2002) e "Sonhos e Pesadelos da Razão Esclarecida" (2005).
Como o nome indica, a série "Folha Explica" ambiciona explicar os assuntos tratados e fazê-lo em um contexto brasileiro: cada livro oferece ao leitor condições não só para que fique bem informado, mas para que possa refletir sobre o tema, de uma perspectiva atual e consciente das circunstâncias do país.
Leia Capítulo
POR QUE LER NIETZSCHE HOJE
Dentre os clássicos da filosofia moderna, Nietzsche talvez seja o pensador mais incômodo e provocativo. Sua vocação crítica cortante o levou ao submundo de nossa civilização, sua inflexível honestidade intelectual denunciou a mesquinhez e a trapaça ocultas em nossos valores mais elevados, dissimuladas em nossas convicções mais firmes, renegadas em nossas mais sublimes esperanças. Essa atitude deriva do que Nietzsche entendia por filosofia.

Para ele, filosofar é um ato que se enraíza na vida e um exercício de liberdade. O compromisso com a autenticidade da reflexão exige vigilância crítica permanente, que denuncia como impostura qualquer forma de mistificação intelectual. Por isso, Nietzsche não poupou de exame nenhum de nossos mais acalentados artigos de fé. O destino da cultura, o futuro do ser humano na história, sempre foi sua obsessiva preocupação. Por causa dela, submeteu à crítica todos os domínios vitais de nossa civilização ocidental: científicos, éticos, religiosos e políticos.

Nietzsche é um dos grandes mestres da suspeita, que denuncia a moralidade e a política moderna como transformação vulgarizada de antigos valores metafísicos e religiosos, numa conjuração subterrânea que conduz ao amesquinhamento das condições nas quais se desenvolve a vida social. Nesse sentido, ele é um dos mais intransigentes críticos do nivelamento e da massificação da humanidade. Para ele, isso era uma conseqüência funesta da extensão global da sociedade civil burguesa, tal como esta se configurou a partir da Revolução Industrial.

Nietzsche se opõe à supressão das diferenças, à padronização de valores que, sob o pretexto de universalidade, encobre, de fato, a imposição totalitária de interesses particulares; por isso, ele é também um opositor da igualdade entendida como uniformidade. Assim, denunciou a transformação de pessoas em peças anônimas da engrenagem global de interesses e a manipulação de corações e mentes pelos grandes dispositivos formadores de opinião.

O esforço filosófico de Nietzsche o levou a se confrontar com as grandes correntes históricas responsáveis pela formação do Ocidente: a tradição pagã greco-romana e a judaico-cristã; e o que resultou da fusão entre as duas.

Ao longo desse seu confronto com o conjunto da herança cultural de nossa tradição, Nietzsche forjou conceitos e figuras do pensamento que até hoje impregnam nosso vocabulário e povoam nosso imaginário político e artístico. Tais são, por exemplo, as noções de Apolo e Dionísio, transformadas em categorias estéticas, os conceitos de vontade de poder, além-do-homem (Übermensch), eterno retorno e niilismo e a figura da morte de Deus.

É impossível se colocar à altura dos principais temas e questões de nosso tempo sem entender o pensamento de Nietzsche. Ateísta radical, ele atribui ao homem a tarefa de se reapropriar de sua essência e definir as metas de seu destino. Dele afirma o filósofo Martin Heidegger: "Nietzsche é o primeiro pensador que, perante a história universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a reflete internamente em toda a sua extensão metafísica. Essa pergunta reza: como homem, em sua essência até aqui, está o homem preparado para assumir o domínio da terra?"1

Nesse sentido, Nietzsche é o pensador de nossas angústias, que não poupou nenhuma certeza estabelecida - sobretudo as suas próprias convicções - e desvendou os mais sinistros labirintos da alma moderna. Com a paixão que liga a vida ao pensamento, Nietzsche refletiu sobre todos os problemas cruciais da cultura moderna, sobre as perplexidades, os desafios, as vertigens no fim do século 19. Dessa sua condição, postado entre o final e o início de duas eras, Nietzsche esboçou um quadro que, em todos os seus matizes, nos concerne ainda, na passagem a um novo milênio, em direção a um destino que ainda não se pode discernir.

A despeito de sua visão sombria, Nietzsche tentou ser, ao mesmo tempo, um arauto de novas esperanças. Sua mensagem definitiva - a criação de novos valores, a instituição de novas metas para a aventura humana na história - é também um cântico de alegria. Essa é uma das razões pelas quais o estilo de Nietzsche resulta da combinação paradoxal de elementos antagônicos: sombra e luz, agonia e êxtase, gravidade e leveza.

Isso explica por que, para ele, o riso e a paródia são operadores filosóficos inigualáveis: eles permitem reverter perspectivas fossilizadas. Nietzsche, o impiedoso crítico das crenças canônicas, é também um mestre da ironia. Sua ambição consiste em tornar superfície o que é profundidade, restituir a graça ao peso da seriedade filosófica.

Opositor ferrenho da dialética socrática, Nietzsche reedita, no mundo moderno, o gesto irônico do pai fundador da filosofia ocidental. Decisivo adversário de Platão, sua filosofia talvez possa ser caracterizada como uma inversão paródica do platonismo. Definindo-se como o mais intransigente anticristão, dá, no entanto, à sua autobiografia intelectual, escrita no final de sua vida, o título Ecce Homo ("Eis o Homem") - expressão empregada por Pilatos ao apresentar Jesus a seus algozes, pouco antes da Paixão.

Nietzsche, o filósofo-artista, um poeta que só acreditava numa filosofia que fosse expressão das vivências genuínas e pessoais, vendo na experiência estética uma espécie de êxtase e redenção, é, por isso mesmo, um precursor da crítica a um tipo de racionalidade meramente técnica, fria e planificadora. A despeito da profundidade e da gravidade das questões com que se ocupa, sempre as tratou em estilo artístico, poeticamente sugestivo; só acreditava na autenticidade de um pensamento que nos motivasse a dançar. Ele mesmo imagina sobre sua porta a inscrição:

Moro em minha própria casa
Nada imitei de ninguém
E ainda ri de todo
mestre
Que não riu de si também.2

Sem extravasar os limites dos livros desta série, Folha Explica Nietzsche se propõe a ser uma apresentação geral do homem e do filósofo Friedrich Nietzsche. Seu objetivo é fazer com que o leitor se familiarize com os conceitos, as figuras e o estilo de Nietzsche --não para depois encerrá-los em qualquer câmara da memória, mas sim para despertar seu interesse e estimulá-lo a seguir adiante. Aceitar o desafio de Nietzsche implica, sobretudo, pensar independentemente; e por isso, às vezes, também contra Nietzsche.

1 Heidegger, "Wer ist Nietzsches Zarathustra?"; em: Vorträge und Aufsätze.
Pfullingen: Neske Verlag, 1954; p. 102.


2 Epígrafe de A Gaia Ciência; em:
Nietzsche, Obra Incompleta. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. Col. Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974; p. 195.

[http://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/ult10037u352101.shtml]

NIETZSCHE E O ASCETA

Na amplíssima crítica que Nietzsche desenvolveu contra os chamados valores ocidentais, nem a vida do asceta, do homem santo, tão admirada e enaltecida pelo cristianismo, escapou do arguto e contundente olhar do filósofo. Aqueles a quem a maioria das pessoas identificava como representantes da mais pura e impressionante das atitudes - o completo e radical repúdio aos prazeres da vida - , apresentavam-se aos olhos dele, de Nietzsche, como um exemplo de uma forma extremada da orgulhosa vontade de poder. Nietzsche, a revolta contra a flagelação da carne

A guerra ocasional do asceta

Nietzsche disse no seu livro Humano, demasiado humano, de 1886, que, para tornarem suas vidas mais suportáveis e também mais interessantes, os homens santos ou os ascetas, tratavam de travar "guerras ocasionais" contra o que chamou de seus "inimigos internos". Ao tomar consciência de que eles também não estavam livres da vaidade, que o desejo de glória não lhes era estranho, e que, inclusive, até eles eram acometidos por apetites sensuais, explicava que a existência do asceta resumia-se numa contínua batalha onde se enfrentam o bem e o mal. Numa desastrada guerra travada entre o corpo e a mente. Por desconhecerem ou reprimirem os prazeres da carne, jamais satisfazendo as exigências do sexo, os anacoretas passam a ser permanentemente atormentados por sonhos delirantes, por fantasias eróticas as mais escabrosas e dissolutas. Os pobres santos, em sua volúpia pelo martírio, desconheciam de que era justamente a ausência de sexo que fazia com que fossem assolados por tentações e pesadelos de toda ordem.

A dura vida da ascese

Para exaltar ainda mais a vitória deles sobre a sensualidade (a representante mais ativa do demônio), e para impressionar os não-santos, os ermitões, para valorizar-se, difamavam-na e a estigmatizavam, associando-a, a excitação, ao pecado e ao mal. Ao espalharem que o homem era gerado em pecado, fizeram com que qualquer ser humano, desde o seu nascimento, nos princípios mesmo da sua vida, se sentisse marcado pelo sinal da transgressão, porque até o ato que os gerava, conúbio carnal, foi denunciado por eles como algo repugnante. É de se imaginar, pois, o enorme estrago que tal doutrina, assumida na plenitude por Santo Agostinho, não provocou nas famílias cristãs, deixando em cada crente uma sensação ininterrupta de má consciência. Estigma que revelou-se em sua plenitude no verso de Calderon de la Barca: "a maior culpa do homem é ter nascido".

Empédocles, a tolerância do sábio pagão

Se bem que é comum às religiões pessimistas condenarem o ato da procriação como uma coisa ruim, Nietzsche recorda que Empédocles, o grande filósofo de Agrigento (494-444 a.C.), um símbolo da tolerância sexual dos pagãos, nada conheceu de vergonhoso ou satânico na existência das coisas eróticas. Bem ao contrário. Para ele era justamente Afrodite, a Vênus, quem trazia esperança e salvação para a vida medíocre e sensabor da maioria das pessoas, resgatando-as da discórdia em que normalmente se condenavam. O sexo, enfim, não escraviza, liberta!

LEITURAS FUNDAMENTAIS

Zaratustra: tragédia nietzschiana, de Roberto Machado
(Jorge Zahar Editor, RJ, 1997, Editora, 175 págs.)

O "Zaratustra" de Nietzsche, de Pierre Hébert-Suffrin
(Jorge Zahar Editor, RJ, 1991, 161 págs.)

Nietzsche é um autor reconhecidamente difícil de ser traduzido, não só por escrever num alemão clássico, extremamente refinado, mas por razões que lhe são próprias. Ele é, como o leitor não se cansa de ver no "Assim falou Zaratustra", um poeta e um filósofo, fazendo que o seu tradutor se embarace ao tentar reproduzir o som harmonioso da lira, ou o pio preciso e mais frio da coruja. Além disso a prosa filosófica alemã naturalmente vocacionada à metafísica, à abstração pura, apresenta complexidades diversas para qualquer tradutor de qualquer idioma. Em cada palavra poderá haver implicações outras, duplas, triplas, quadruplas, ... inúmeras.

Em português existem as conhecidas traduções de Mario da Silva (Círculo do Livro, SP), que é uma das mais antigas (relançada pela Editora da Civilização Brasileira, RJ), a de Eduardo Nunes Fonseca (da Hemus - Editora, SP) e, finalmente, uma bem mais recente, feita por Pietro Nassetti (Editora Martin Claret, SP) que conseguiu fazer da sua tradução do "Zaratustra" uma excelente leitura. Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche (Editora Martin Claret, São Paulo, 1999, 255 págs., tradução de Pietro Nassetti).

A TRANSFORMAÇÃO DO HOMEM

"Was gross ist am Menschen, das ist, dass er eine Brücke und kein Zweck ist: was geliebt werden kann am Menschen , das ist, dass er ein Übergang und ein Untergang ist"

"A grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma transição e um ocaso." - F.Nietzsche - Assim falou Zaratustra, I,4

Num primeiro momento da história espiritual do homem, pelo menos o de espírito sadio, ele não passa de um camelo, que, como o desgraçado animal, apenas ajoelha-se e agradece quando lhe dão uma boa carga. Carrega pelo deserto as culpas por ter nascido. Na sua humilde corcova avoluma-se as penas do mundo, sobrecarregado pelas regras morais e pelas imposições que lhe fazem, que lhe dizem - tu deves (Du-sollst!)! Porém, no deserto, isolado, dá-se uma transformação. O camelo vira um leão. É o espirito que, liberto, quer ser "o senhor do seu próprio deserto". Agora é ele quem, rugindo desafiante, responde - eu quero! (Ich will!). Se bem que o leão não consiga ainda criar os novos valores, ele pelo menos, assentado na sua força e vigor, sacode para fora a canga que afligia o pobre camelo. Dá-se então a derradeira transformação - o leão vira criança. Sim porque a criança é esquecimento, é um novo começo, é o embrião do super-homem que, ao crescer e desenvolver-se, "quer conseguir o seu mundo".
O camelo (Kamele)
O espirito do homem na sua época religiosa e cordata, conforme com seu destino de animal de carga, submetido ao grande dragão. - Encontra-se sob o imperativo do "Tu deves!"
O leão (Löwe)
A emergência do espirito de rebeldia. A insubordinação contra os valores tradicionais e contra as imposições morais e convencionais. - Afirma-se através do "Eu quero!"
A criança (Kind)
A nova era que nasce. O tudo por fazer que se descortina numa nova situação, num mundo novo que se livrou do passado opressivo. - "Ele alcançará!"

Os inimigos do profeta

Zaratustra é um celebrante da carnalidade, um pregador da vida vivida, da sensualidade, do prazer de dominar, ou do simples gozo em existir. É o grito do instinto sufocado! Por conseqüência, seus inimigos são os que detestam a vida, os "acusadores da vida" (Ankläger des Lebens), os que reprimem e condenam a volúpia, os que dizem que as pulsões humanas são artes do demônio, os que pregam o Outro Mundo, como os sacerdotes e os moralistas, que insistem em fazer com que o homem envergonhe-se do seu próprio corpo e das suas sensações, chamando-as inumanas, imundas e pecadoras.

O profeta quer o diferente, o que se distingue, o que se vangloria, o altivo com justa razão, o indivíduo soberano e viril, não as massas que "trazem mau olhado à Terra". Suas palavras não devem ser "apanhadas por patas de carneiros". Logo todos os democratas, os pregadores da igualdade e correlatos, são seus adversários, os odiados inimigos. Pois o mundo "gira ao redor dos inventores de valores novos" (die Erfinder von neuen Werten dreht sich die Welt), da Personalidade Magnífica e não do homem comum, que vive discursando - "somos todos iguais perante Deus ". Ora, como deus morreu o homem superior ressuscitou da sua sepultura. É para ele que a luz do futuro brilha.

É tudo um só mundo

Não há para o profeta dois mundos, o de cá e o de lá, nem corpo separado da alma, nem bem nem mal. Tudo é uma coisa só. Carne é espirito, a terra também é céu, o mal também é o bem. O homem imaginou haver um além porque ele sonha, e no seu sonho - "vapor colorido diante dos olhos" - lhe aparecem fantasmas dos mortos e das coisas passadas, por isso ele, iludido, concebeu um Outro Mundo. Ingrato, ao invés de exultar com a existência recebida, percorre os céus com os olhos supersticiosos atrás de uma estrela, acreditando ir parar ao seu lado no futuro.

Seguidor de Heráclito - que via o Cosmo um produto do agón, da luta -, Zaratustra assegurava que toda a batalha a ser travada é uma bem-vinda guerra terrestre na qual o super-homem (expurgando ou afastando de si os sentimentos caritativos e piedosos, afirmando-se sobre si mesmo com os valores que ele mesmo criou) se lançará na conquista do devir. Mas, adverte, antes do super-homem atingir esse futuro, haverá o crescimento do deserto - uma grande ameaça ao oásis onde se homiziava o homem superior.

O filho de Zaratustra

No final do canto de Zaratustra (Parte IV - o sinal), depois do profeta ter dispensado os grandes dignatários (rei, imperador e o papa), não identificando neles os sinais do super-homem, ele projeta aquele que advirá. A sua nobreza não é resultado de títulos, nem de sangue. O Übermensch é o que irá superar o homem e, para tanto, já expurgou de si toda a fraqueza e vilania tão comum aos humanos. Ele não tem pejo em querer vingar-se, nem se envergonha em ter ódio, sabe que se almeja a alegria também terá que suportar o sofrimento. Mas nem os homens superiores que o profeta encontrou pelo caminho o satisfazem.

"Pois bem!", disse ele, "estes homens superiores adormecem enquanto eu estou desperto. Não são os meus verdadeiros companheiros". O viajante (der Wanderer) após ter percorrido uma longa peregrinação, na qual esgrimiu-se em mil encontros e outros tantos percalços, recolheu-se de volta ao seu ermitério. Sentado na pedra em frente a gruta ele pede que cantem "Outra Vez", porque ele afirmava o Eterno Retorno das coisas. Tudo o que aconteceu nos remotos tempos voltaria a ocorrer - a história é um circulo não uma ascensão! Palavras como honra e nobreza certamente voltarão a reluzir.

A hora de Zaratustra

Com seus cabelos embranquecidos eriçados pelos vôos dos pássaros, o sábio sentiu que o leão estendido aos seus pés recostara a cabeçorra dourada no seu colo, lambendo as lágrimas que escorriam pelas suas mãos. O vidente estava exausto. Afinal ele era um montanhista (ein Bergsteiger) que detestava as planícies. Meditando, Zaratustra foi tomado de súbita emoção. Sentiu-se maduro porque que soara a sua hora, a sua alvorada - o Grande Meio-Dia chegara. O anúncio, o sinal de que o super-homem estava por vir fez com que ele, lépido, aspirando somente a sua obra, deixasse a sua gruta. Assim como o alvorecer sai por detrás das montanhas escuras, ele saiu para ir receber o seu filho.

Dies ist mein Morgen, mein Tag hebt an: berauf nun, berauf, du grosser Mittag! - Also spracht Zarathustra, und verliess seine Höhle, glühen und stark, wie eine Morgensonne, die aus dunklen Bergen Kommt.

POR QUE ZARATUSTRA?

Zaratustra ou Zoroastro, fundador da religião persa, foi um profeta ariano que por volta de 600 a.C. pregou a existência do Bem e do Mal como entidades distintas e totalmente antagônicas (até então a crença geral era de que o mesmo deus era capaz de uma coisa, como a outra). É o autor dos Gäthäs, cinco hinos que formam a mais antiga e sagrada parte do Avesta, o livro santo do zoroastrismo. Nietzsche tomou conhecimento dele provavelmente por intermédio da obra de um erudito da época, inspirando-se então naquela fantástica personalidade.

O motivo de um ateu assumido como Nietzsche ter lançado mão de um carismático líder religioso do passado, fazendo-o veículo da sua mensagem, deve-se a que o pensador alemão racionalmente e intelectualmente deixara de ser cristão, mas psicologicamente e emocionalmente ainda seguiu tendo a mente de um crente. Afinal, Nietzsche era filho de um pastor luterano. O que igualmente explica o tom de sermão da sua prosa, carregada de parábolas, simbolismos e imagens litúrgicas e locais sagrados, presentes na maioria dos capítulos do "Assim falou Zaratustra". A escolha também tratou-se de uma provocação, pois o Zaratustra ficcional dele retornou a cena exatamente para desfazer o que o real profeta ariano fizera há mais de dois mil e quinhentos anos passados, isto é, instituir a idéia do Bem e do Mal.

O Anticristo

Zaratustra é pois um Anticristo. Ele não veio do deserto como Jesus Cristo, mas sim desceu do alto da montanha, do fundo da caverna, como viu Platão os filósofos emergirem em busca do sol, em busca da vida. Não se dirige aos pobres, ao humildes, aos doentes, aos perdidos e aos fracos, muito menos lhes promete o Reino dos Céus. Seu público é outro. É o dos vencedores, dos afirmadores da vida, os que querem viver o aqui e o agora, tendo a Terra como seu único reino. Arenga aos que desprezam! Desceu à planície para anular o cristianismo.

A sua meta é atingir uma parte especifica da humanidade, os homens superiores (höheren Menschen), a quem Cristo ignorou. Zaratustra é sim um Cristo da elite, pois Nietzsche escreveu o evangelho do super-homem - o que anuncia um novo tempo, uma era em que Deus morreu (dass Gott tot ist!), na qual o Homem se apressa para assumir o poder na totalidade, na qual terá que arcar com as conseqüências morais e éticas de um mundo sem Deus.

Para tanto, ele, o super-homem, operará a transvaloração. Tudo o que o cristianismo estigmatizara - o orgulho, o egoísmo, a riqueza, a vontade de poder, a sensualidade e a nobreza de espírito - deverá voltar a modelar e inspirar a humanidade. A resignação, a docilidade e o servilismo, por sua volta, serão sucedidos pela ação, pela inconformidade e pelo domínio - A lamúria do resignado, cederá lugar ao grito do forte!

Os próprios símbolos que cercam Zaratustra, a águia e a serpente (meinen Adler und meine Schlange), antigas metáforas zoológicas do orgulho, da arrogância e da astúcia, contrapõem-se às do cordeiro e do peixe - os favoritos de Cristo - ícones da mansidão, da quietude e da simplicidade. Se Cristo pregou o Sermão da Montanha para os pobres de espirito, Zaratustra lança sua isca para alçar os destemidos. O seu é um Evangelho dos Fortes. Sua mensagem não é para todos, é para poucos.

Viver perigosamente

"Ich seht nach oben, wenn ihr nach Erhebung verlangt. Und ich sehe hinab, weil ich erhoben bin. Wer von euch kann zugleich lachen und erhoben sein? Wer auf den höchsten Bergen steigt, der lacht über alle Trauer-Spiele und Trauer-Ernste."

"Olhais para o alto quando aspirais elevar-vos. Eu, como já encontro-me acima, olho para baixo/ Quem entre vocês pode estar acima e ao mesmo tempo gargalhar? Aquele que escalou o mais elevado dos montes, ri-se de todas as tristezas encenadas da vida." - Zaratustra - da leitura e da escrita

Enquanto Zaratustra pregava na ágora, a atenção da multidão desviou-se para o alto onde estava um equilibrista numa frágil corda. Um outro, um rival, afobando-se, terminou por precipitar-se no chão, estatelando-se agonizante bem perto do profeta. O desastrado homem, no seu estertor, acredita que agora o diabo o arrastará para o inferno. Confortando-o, Zaratustra diz-lhe: "Amigo - palavra de honra que tudo isso não existe, não há diabo nem inferno. Sua alma ainda há de morrer mais rápido do que seu corpo: nada tema". Quando o trapezista caído ainda se lamenta pela vida que levou "recebendo pancadas e passando fome", o profeta consolou-o respondendo: "Não, você fez do perigo sua profissão, coisa que não é para ser desprezada"( du hast aus der Gefahr deinen Beruf gemacht). Dito isso ele mesmo trata de sepultá-lo com suas próprias mãos.

A cena do profeta tendo em seus braços um morto, é a "pietá" de Nietzsche. Este é o modelo de homem do profeta, o que compete, o corajosos que arrisca, o que diariamente vive na corda bamba, e que morre por isso mesmo, por levar uma vida perigosa (ein gefährliches leben).

Os companheiros de Zaratustra

Como o povo (Volke) não lhe deu ouvidos, Zaratustra, resmungando "que me interessam a praça pública, o populacho e as orelhas cumpridas do populacho?", concluiu então que precisava de companheiros (Gefährten): os "que desejam seguir a si mesmos, para onde quer que eu vá". Afinal ele viera "para separar muitos do rebanho". Que tipo de companhia quer o profeta? Justamente os que "os bons e justos" mais odeiam - o que lhes despedaça os valores, o infrator, o destruidor - porque é esse o criador.

Não são os negligentes nem os retardados que o seguirão, mas sim os inventivos, os que colhem e se divertem, os solitários e todos aqueles unidos pela solidão, interessados em escutar coisas inauditas - a marcha do profeta será a marcha deles. Assim é que sua oração dirige-se para os que estão atacados pela "Grande Náusea"(der grossen Ekel), o tédio de quem vive numa época em que o antigo deus morreu, mas que não existe ainda nenhum outro novo deus. Zaratustra veio para afastar deles a sombra dos deuses antigos que ainda escondem-se atrás das nuvens do presente. Veio para mostrar-lhes a verdadeira face da natureza, chegou par torná-la humana, para desmagizá-la.

O que irritava sobremodo o profeta era o último homem (letzter Mensch), um teimoso, "inabalável como um pulga", que, segundo Heidegger, não queria "se desfazer da sua depreciável maneira de ser". Ao insistir em viver de acordo com os valores desaparecidos, em prender-se a um ídolo que já se fora, esse cabeça-dura continuava a freqüentar o santuário do deus caído em ruínas. Ali, nada mais achando nele, o estulto agachava-se, arrastava-se no pó, em meio aos cacos, atrás das cobras e dos sapos para adorá-los.

NIETZSCHE, A CONSTRUÇÃO DO ZARATUSTRA

A quem Zaratustra procura

"Der Mensch ist ein Seil, geknüpft zwischen Tier und Übermensch - ein Seil über eninem Abgrunde. Ein gefährliches Hinüber, ein gefäherliches Auf-dem-Wege, ein gefährliches Zurücblicken, ein gefärliches Schaudern und Stehenbleiben."

"O homem é corda distendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigosos olhar para trás, perigoso tremer e parar." - Nietzsche "Assim falou Zaratustra", 1883

Meditando por dez anos numa caverna no alto de uma montanha, Zaratustra, apenas na companhia dos seus animais prediletos, a águia e a serpente, determinou-se baixar à planície. Decidira-se depois daqueles anos de rigor eremita vir comunicar aos homens a chegada de um novo messias, o Übermensch - o super-homem, o que dominará o futuro. Assim feito, Zaratustra enumera a quem sua mensagem se dirige:

Os eleitos por Zaratustra

- os que vivem intensamente, que são indiferentes aos perigos (welche nicht zu lebem wissen) porque são capazes de atravessar de um lado para outro;

- os grandes desdenhosos (der grossen Verachtenden), porque estão sempre tentando chegar a outra margem;

- aos que se sacrificam pela terra (die sich der Erde opfen);

- o curioso, o que quer conhecer (welcher erkennen will);

- quem trabalha e realiza invenções engenhosas (welcher arbeiter und erfinder);

- o que preza a sua própria virtude (sein Tugen liebt);

- aquele que distribui o seu espirito entre os demais (ganz der Geist seiner Tugend sein will);

- o que deseja viver e deixar viver (willen noch leben und nicht mehr leben);

- quem não seja exageradamente virtuosos, nem excessivamente moralista (welcher nicht zu viele Tugenden haben will);

- aquele que não fica a espera de agradecimentos ou recompensas (der nicht Dank haben will);

- o que não trapaceia (ein falscher Spieler);

- o que se orgulha dos seus feitos (welcher goldne Worte seine Taten vorauswirft);

- o combatente do presente (den Gegenwärtigen zugrunde gehen);

- o que desafia e fustiga o seu Deus (welcher seinen Gott züchtig);

- o de alma profunda (dessen Seele tief);

- o de alma trasbordante, que esquece de si mesmo (sich selber vergisst);

- quem tem o espirito e o coração livres (der freien Geistes und freie Herzen ist);

- os vaticinadores, os que prenunciam o relâmpago próximo (dass der Blitz kommt, und gehn als Verkündiger zugrunde), um relâmpago que se chama super-homem (Übermensch).

OS CINCO TERMOS CAPITAIS DE NIETZSCHE

Niilismo
(Nihilismus)

Expressão polivalente. Movimento intelectual e político do século XIX, e também expressão usada por Turgueniev para definir a descrença nas tradições religiosas e institucionais até então vigentes. Os crentes do Nada (do latim nihil) talvez fosse apropriado dizer, apesar de paradoxal ou contraditório. Assim classificaram-se os militantes do ateísmo, os anarquistas, os populistas russos, e todos aqueles que se empenhavam em desafiar as normas de comportamento e a duvidar ostensivamente da religião e da existência de Deus. Uma das marcas da modernidade.

Transvaloração
(Umvertung aller Werte)

Exigência da filosofia nietzschiana na recuperação dos valores nobres perdidos, fazer do "mau" voltar a ser "bom", elogiar o orgulho, a vaidade, a soberba e a arrogância humana, e até o desejo de vingança, desprezar o que é vil, o que é fraco, o que é humilde, o que recende à ralé. Inverter totalmente os valores éticos do cristianismo, reabilitando os antigos valores esgotados da cultura. De certa forma é a restauração do ethos pagão que girava ao redor do herói e do guerreiro intrépido.

Super-homem
(Übermensch)

Teoricamente aquele que irá superar (Über) o homem. Um novo ser que, trazendo as novas tábuas, assumirá na totalidade a responsabilidade de viver num mundo ausente de Deus. Caracteriza-se por sua determinação absoluta, pela confiança em sua intuição, pelo seu caráter inquebrantável, por uma solidão ativa, corajosa, e sem concessões no tocante a sua meta (Werke). Ele é um criador, um duro, que não se deixa tomar pela compaixão, dele é o devir.

Vontade de potência
(Wille zur Macht)
Trata-se da pulsão permanente pela vida e pelo domínio. Requer a mobilização completa das energias, físicas e mentais, para incessantemente conduzir as coisas às últimas conseqüências. Wille zur Macht é o domínio e a superação de si, das debilidades, e, também domínio sobre os outros e sobre a natureza. A vontade liberta porque é criadora.

Eterno retorno
(ewige Widerkunft)
Repto nietzscheano à idéia do progresso dos evolucionistas; à divisão em três etapas da história dos positivistas; à crença do cristianismo na salvação da alma, nascida em pecado e redimida pela graça. É uma retomada da concepção cíclica (ciklós) dos pitagóricos e dos estóicos que viam um eterno perecer e renascer da natureza e da história. Tudo que houve exaurido o Grande Ano, voltará a ocorrer, intermediado pelo fogo e pela destruição periódica.

NIETZSCHE FILÓSOFO

A filosofia mundana

Coube a Kant definir a existência de dois tipos de filosofia, a acadêmica (comprometida com um sistema de conhecimento racional, presa aos interesses específicos dos pensadores e dos profissionais), e a mundana, que abrange a todos, que não tem limites em suas ambições. A primeira, é antes de tudo um exercício técnico, professoral, a segunda, literário e ideológico, geralmente provocando enormes ressonâncias na sociedade. Evidentemente que Nietzsche preenche inteiramente o segundo quesito. A prosa dele poucas vezes recorre aos conceitos reconhecidos como "oficiais" da filosofia tradicional, quanto à terminologia científica ela quase sempre aparece nela oculta atrás de uma roupagem poética ou mesmo sacerdotal. Viu a filosofia não como uma atividade especulativa, um estiolado exercício intramuros feito por um especialista, apartado das coisas da vida, mas "uma procura voluntária" até das "coisas mais detestáveis e infames". Uma "peregrinação através dos gelos e do deserto" atrás de uma "história secreta", por meio de "um olhar diferente do que até agora se filosofou".

Uma filosofia para a ação

A filosofia dele não é apenas iconoclástica no sentido de propor a "quebra das tábuas" ou de apresentar uma outra leitura da tradição do pensar ocidental (quando, por exemplo, aponta Sócrates como "decadente"), também o é no sentido do próprio filosofar. Nada mais distante dele do que a recomendação estóica da ataraxia, a procura da quietude, do ócio reflexivo, do apartar-se das paixões. Ou ainda da recomendação de Spinoza para que a conquista do entendimento se faça sempre acompanhada de um não ao riso, ao deplorar e ao detestar.

Ela, a doutrina nietzschiana, clama por movimento, é uma convocação a toque de caixa e clarim de todas a energias vitais do indivíduo superior, ela mesma é uma pulsão incessante. Neste sentido é anti-intelectualista por excelência. Ao acentuar o ato e não a reflexão ou a meditação (que aliás é uma prática abolida do seu receituário, por ter "sido posto em ridículo o cerimonial e atitude solene do que reflexiona"), privilegia o "experimental", como ele mesmo definiu sua filosofia (Vontade do Poder - 476). Se há indecisão entre Apolo e Dionísio, entre a razão e a emoção, ele recomenda seguir o deus das bacantes.

Neste nervosismo para cumprir com a obra (com a qual todo seguidor de Nietzsche obrigatoriamente deve comprometer-se), "uma máquina em movimento contínuo", a racionalização torna-se um impedimento, um freio intelectual a ser desativado ou destravado. Não que a razão seja dispensada mas sim que ela apenas deverá servir como um instrumento da ação e não para atravancá-la. Pode-se dizer que os símbolos mais precisos do seu filosofar são a ponte (a travessia, o ir para o outro lado, o transcender), e o trapézio (a busca do perigo, do risco, de tentar viver no limite máximo das experiências possíveis), para fazer da vida uma grande aventura. Assim despreza os que acusam-no de fomentar a hybris, o excesso de ação, a falta de limites, o exagero.

Uma filosofia da solidão

Heidegger disse ter sido Nietzsche o primeiro a conceber metafisicamente o momento em que "o Homem se apressa a assumir o poder na terra na sua totalidade". Sobre esse novo homem, sobre esse super-homem, recaem pois todas a responsabilidades. Ele não tem mais para quem apelar tal como o último dos homens ainda fazia no santuário em ruínas do seu Deus morto. Logo, deve fazer crescer dentro de si forças vitais e existências extraordinárias: "Sobe, pensamento vertiginoso, sai da minha profundidade!"....

"O meu abismo fala. Tornei à luz a minha última profundidade!"(Assim Falou Zaratustra, III, 1). Não poderá, esse espírito livre, ter contemplação com suas fraquezas, ter compaixão dos outros ou de si lhe é inominável. A palavra de ordem é endurecer! Fazer do seu interior, do corpo e mente, uma intransponível couraça, capaz de desviar de si o sentimentalismo e a piedade. Para Nietzsche, afinal, sempre pareceu inaceitável um Deus todo-poderoso que se deixasse levar por preces, ladainhas ou louvores, dos humilhados e ofendidos.

Esse ser de Nietzsche tem um fim em si mesmo, ele é a fonte exclusiva da sua energia, ele é o seu próprio consolo porque, afinal, "Deus está morto!" Mas de onde extrair firmeza para o extraordinário desafio que é viver num mundo sem Deus? A que reservas humanas recorrer? Justamente aquelas, as mais ocultas, as que foram sufocadas pelos valores religiosos e pela racionalidade dos metafísicos, as virtudes do instinto, da preservação, da agressão, "o lado mais poderoso, mais temível, mas verdadeiro da existência, o lado em que sua vontade mais exatamente se exprime"(Vontade de Poder - 476). Deve-se explorar esse interiores, "nossas plantações e jardins desconhecidos" .. pois "somos todos vulcões esperando a hora da erupção"(Gaia Ciência, I,9). Esse titã solitário e viril, tal como um deus de si mesmo, busca então as alturas para fugir do ar empestado pelas multidões e pelo agito dos mercados, procurando lá em cima nas estratosferas a companhia das estrelas. É com ele que as águias se identificam.

O homem é um devir

Seguindo a lógica de Darwin, que via as espécies em luta permanente para manterem-se e adaptarem-se, afirmou que o homem "é um animal ainda não definido", é algo que ainda está em construção. Não obedecendo ao desígnio divino mas sim as suas pulsões e instintos de sobrevivência, de uma natureza humana que ama lutar, o homem faz a si próprio. Fazendo do agón, do combate, a sua razão de ser, até mesmo o conhecimento superior que adquire resulta de um duelo, provido que foi pela faísca resultante do entrechocar da espadas umas contra as outras. Ao redor dele tudo é um guerra civil, contra os outros e contra as adversidades em geral. Ele é um perpétuo superador de si mesmo.

Portanto, ele não vê na Natureza uma mãe dadivosa e boa como Rousseau a imaginou, mas sim uma madrasta que ao mesmo tempo que lhe permite a vida é avara nas suas benesses: exuberante na sua licenciosidade mas mesquinha nos seus benefícios. Exatamente por isso, a conquista seja lá do que for tem um preço e um sabor incomparável. A decisão de enfrentar as coisas porém não é uníssona e nem traz resultados iguais. Alguns se decidem e vencem, os fortes; outros não, os fracos, os covardes. Merecem eles viver? Cabe à árvore da vida suportar em seus galhos esses frutos inúteis, bichados, estragados, sem esperar que nenhum vento salutar os abale e os derrube?

A psicologia de Nietzsche

A teoria do ressentimento como expressão dos vencidos da vida é uma apreciável, se bem que questionável, contribuição de Nietzsche à psicologia moderna. Tomou-a da leitura que ele fizera do "O homem do subterrâneo", de Dostoievski, um relato tortuoso de um misantropo neurótico. Se Hegel estruturou sua concepção da hierarquia social e da formação do estado a partir de um duelo primeiro, onde o vencido, para manter-se vivo aceitava ser escravo e reconhecia no vencedor o seu senhor (ver "Fenomenologia do Espírito", 1807), Nietzsche também irá remontar à esse hipotético duelo para extrair outras conseqüências.

O embate dele se dá na Palestina no tempo da ocupação romana, quando a casta de sacerdotes judeus, impotentes em derrubar o conquistador, destilou para todos os lados o veneno do ressentimento. Tudo aquilo que era associado ao romano, o que era nobre, altivo, corajoso, passou a ser denunciado como "mau". Por outro lado, o que era vil, fraco e covarde, pareceu-lhes ser "bom". Dessa forma, por meio dessa sutil e corrosiva artimanha, deram começo ao trabalho de sapa visando atingir a solidez psicológica do vencedor. Passado algum tempo, os vencedores, os nobres romanos, minados por esse discurso dos cupins sacerdotais, deram-se por vencidos. Abandonaram ou abdicaram os seus princípios, o que até então lhes dava coragem, capitulando finalmente frente a barbárie invasora.

A linguagem do fraco

Havendo uma linguagem do forte, há por sua vez uma do fraco, uma linguagem do rebanho - a amarga retórica dos cativos. É dela que deve-se precaver. Há nela um evidente discurso do ressentimento, que atribui todas as desgraças do mundo e da sua vida aos outros. Incapaz de assumir a sua responsabilidade pessoal (atributo apenas dos fortes), seja lá no que for, o medíocre, o pequeno, o de " alma estreita", transfere a causa dos seus inúmeros fracassos e decepções a tudo o que está além e acima dele (em Deus ou no diabo, nos nobres, no senhor, no patrão, etc..). O sentimento melindrado do rebanho, expressão coletiva do ordinário e do baixo, volta-se então contra o que se destaca, para o excepcional, acusando-o com dedos numerosos e trêmulos de não ter fracassado e sucumbido na vida como os demais. Condena igualmente "as paixões que dizem sim": a altivez, a alegria, o amor do sexos, a inimizade e a guerra - enfim, "tudo o que é rico e quer dar, gratificar a vida, dourá-la, eternizá-la e divinizá-la - tudo o que age por afirmação". (A Vontade de Poder - 479)

Interessa constatar que Nietzsche foi um arguto observador das terríveis mazelas e distorções psicológicas que a dominação de um ser humano sobre o outro provoca. De certa forma ele inverte o primado marxista de que as idéias dominantes são as da classe dominante. Para Nietzsche, ao contrário, são os dominadores que têm que precaver-se com as perigosas e debilitadoras idéias dos dominados, pervertidas que foram exatamente por terem sido de alguma forma oprimidos, o pegajosos lodo plebeu que tudo envolve, invade e abala.

Homem, um animal doente

O dominado, o pequeno, o plebeu, é um ser aviltado. Ele não tem palavra nem se guia pela verdade. Vive de estratagemas, quase todos bem longe do que poderiam ser considerados como dignos ou honrados. Isto, por sua vez, ira fazer com que Nietzsche denuncie a existência de um universo externo ao indivíduo superior, composto, acima dele, por um poderosos discurso moral, religioso e metafísico, repressor, e, abaixo dele, pelo ressentimento do rebanho, que faz com que as pulsões naturais, fonte das suas características maiores que alimentam o seu talento e o seu desafio, impossibilitadas de virem a se realizar, voltem-se para o seu interior, corroendo-o, aviltando-o, sufocando-o. E o que diz essa acusação opressora? Que tudo aquilo que percorre no íntimo do humano, que seus instintos e fantasias outras que lhe são sugeridas nos seus sonhos, são em geral pecaminosos, indignos, profanadores de uma pureza que ele deveria preservar para poder salvar-se. Que, dizem-lhe mais, a busca do ser bem dotado pela afirmação pessoal e pelo exercício legitimo das suas qualidades não passa de orgulho, de hybris, de ambição desmedida. O resultado disso, dessa crueldade para com a própria espécie, é que o homem, psicologicamente mutilado, "torna-se um animal doente". É um ser eternamente atormentado por ter que viver com uma carnalidade e sensualidade latente, exigindo coisas que ele sempre terá que negar, ocultar, contornar e sepultar, obrigando-o a rastejar frente a deuses que o julgam culpado.

Os negadores da vida

De certo modo, ainda que por outro ângulo ideológico, Nietzsche segue a tarefa da Ilustração no seu combate ao sacerdote. Não se trata somente de alguém que vive da exploração da superstição e da crendice dos simples, que quer manter o povo na ignorância para usufruir de prestigio e poder que a posição clerical lhe confere. O homem de preto para Nietzsche é algo ainda pior. É um inimigo da vida, ele persegue com denodo toda e qualquer forma de expressão de autenticidade, de criatividade, de sensualidade, denunciando-a como fruto do orgulho e da arrogância, tratando-as como uma perigosa manifestação do pecado. É, pois, toda uma cultura religiosa milenar, herdada dos mandamentos judaicos e do clericalismo romano, estruturada nos mandamentos do "Não!"( "Não invocarás ..não roubarás...não matarás, etc...), que deve ser denunciada em favor de uma doutrina da afirmação, que enfatize um altissonante "Sim!"

Ele, o sacerdote, a pretexto de salvar a alma, é o responsável pela doença do homem. Com a morte de Deus, a existência do bem e do mal se volatilizou, a prédica religiosa não tem mais nenhum sentido. Mantê-la apenas prolonga o mal estar entre os humanos. Aconselhar, ainda assim a todos, a mansidão, a humildade, a tolerância e a caridade, só avilta ainda mais as gentes, além de envergonhar os homens de força e talento. Desconsiderando serem eles os portadores de uma exuberância animal, inibem ou mutilam a mais autêntica potencialidade criativa que possuem.

Conclama assim que Jesus Cristo, martirizado na cruz, ícone da dor e do sofrimento, seja sucedido por Dionísio, o deus pagão da alegria, do delírio místico, que vem para celebrar e regozijar-se com a vida, e a coroa de espinhos que apresilhava a testa sangrada do galileu, substituída fosse pelos jocosos chifres do deus-bode dos velhos pagãos. Que, enfim, o inspirador da castidade, da abstinência e do jejum, desse lugar ao estimulador do frenesi, da sensualidade e do exagero. Em termos freudianos trata-se da libertação do id e do ego das imposições do superego.

A posição da filosofia de Nietzsche

Habermas, expondo o confronto que estabeleceu-se na Alemanha do século XIX entre as duas correntes opostas emergidas ambas da filosofia de Hegel, os hegelianos de esquerda, ou jovens hegelianos (Marx, Bauer, Hess, Ruge, etc..) e os de direita (Rosenkranz, Hinrichs e Oppenheim), viu em Nietzsche um repúdio e uma superação delas. Para os hegelianos de esquerda tratava-se de erigir uma nova sociedade que definitivamente ultrapassasse aquela em que viviam, para os de direita, ao contrário, apontavam a religião e o estado, como os únicos capazes de voltar a aglutinar uma sociedade civil ameaçada de dissolução. Perfilou-se deste modo aquilo que Moses Hesse chamou de "o partido do movimento" e o "partido da permanência". Para muitos pensadores, Hegel é considerado o paradigma da filosofia alemã moderna.

Frente a esse verdadeiro cabo-de-guerra entre a revolução e o conservadorismo, que dominou o cenário alemão da época de Bismarck, Nietzsche, rejeitando o radicalismo revolucionário bem como o imobilismo reacionário, dedicou-se a um trabalho de sapa para abalar os fundamentos deles, negando-se a aceitar fosse o governo da massas como o regime dos reis. A síntese disso foi o super-homem que, simultaneamente, afastava-se das multidões e dos socialistas e desconsiderava os sacerdotes e os monarcas.

Partido do movimento
Jovens hegelianos que pretendiam converter a filosofia numa prática capaz de conduzir a sociedade ao socialismo e ao igualitarismo
Nietzsche e o neo-romantismo
Opõe-se a ambos , reservando ao super-homem um papel de dupla superação, da revolução e da reação
Partido da permanência
Hegelianos de direita, que apenas desejam manter a dinâmica da sociedade burguesa, desde que ela não corroesse os primados sagrados da religião e do estado.