sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

EM BUSCA DO SUPER-HOMEM

A decadência da sociedade ocidental

Nietzsche tinha a firme convicção de que a sociedade européia em que vivia estava atacada por profundos males, cujas sinais de decadência mais evidentes revelavam-se: a) pela expansão do liberalismo (visto como doutrina de uma burguesia senil e covarde, sem energia para reprimir a emergência da nova barbárie); b) pela crescente demanda pela democracia feita por sindicatos e pelo populacho em geral, ao qual se associavam movimentos feministas e outros libertários ("porque, bem sabes, chegou a hora da grande, pérfida, longa, lenta rebelião da plebe e dos escravos; que cresce e continua a crescer"- Zaratustra, IV parte) ; c) pelo crescente império do mau gosto, no teatro, na ópera, na música, exposto pela difusão e divulgação da arte popular ("É que, hoje, os pequenos homens do povinho tornaram-se os senhores...isso, agora, quer tornar-se senhor de todo o destino humano. Oh, nojo! Nojo! Nojo!"- Zaratustra - IV parte, 3)

Origens mais remotas da decadência

Deve-se ao cristianismo, segundo Nietzsche, a origem mais remota da crescente debilitação da elite européia, na medida em que aquela religião retirou dela, da antiga casta nobre, a capacidade de retaliação. Esta era necessária para afirmá-la como poder, mas devido à pregação da tolerância, e pelo exercício inútil da piedade, da compaixão e do perdão, a velha estirpe se enfraqueceu, senilizou-se.

O cristianismo é uma religião de escravos que louvava a pobreza, a humildade (dos pobres é o Reino dos Céus) e a covardia (dar a outra face), opondo-se à ética dos fortes, dos senhores romanos. O ódio paulino ao sexo nada mais era do que um disfarce do ódio que o cristianismo devota à vida, devido ao sentimento de inferioridade intrínseca daqueles que se ressentiam contra os seus dominadores. A influência dos evangelistas envenenou Roma, contribuindo para a sua decadência ao fazer com que o senhores do império perdessem o elã e a crueldade que era preciso para manter coeso o seu domínio do mundo. Os conceitos de bem e do mal estão superados porque Deus morreu, logo era preciso encarar a realidade e concentrar a atenção na elaboração de uma outra ética que se baseasse apenas na força do caráter e da personalidade do indivíduo.

O que fazer?

A expectativa de Nietzsche, a única esperança que ele vislumbrou para evitar a bancarrota da grande cultura ocidental, ameaçada pelo mau gosto do populacho e pela possível insurreição das massas (como correra com a Comuna de Paris em 1871), era aguardar a chegada do super-homem. A ele, a este novo messias, estaria reservada a tarefa hercúlea de enquadrar a plebe, reprimindo seus anseios político e sua desqualificação estética. O super-homem não existia na época em que Nietzsche viveu, mas profetizou sua chegada para o futuro. Ele é quem executaria a transmutação dos valores, fazendo com que "Bom" e "Justo" voltassem a ser associado a "Nobre" e "Digno", e não mais a "Pobre" ou "Humilde", como ocorria na moral cristã.

Quem é o super-homem?

Este poderoso e tão popular personagem da imaginação nietzscheana derivou do romantismo alemão (com sua incontida celebração do gênio, do indivíduo dotado de virtudes incomuns) mas também da secularização da mitologia, encarnada num Prometeu redivivo, já assinalado por Goethe. O gênio é uma força irracional, um fenômeno da natureza, quase divino e absolutamente extraordinário: assim o enalteceram Goethe, Fichte e Hegel (que afinal conviveram com Napoleão Bonaparte). Ele encontrava-se bem acima dos demais mortais, sendo característico dele usar os outros seres humanos apenas como degrau para sua ascensão. É um forte, um aristocrata (não no sentido de sangue, mas de personalidade), um colossal egocêntrico que faz suas próprias leis e regras e que não segue as da manada. Mas o super-homem pode ser visto também como o resultado último da uma concepção evolucionista. Se, no passado remoto, como ensinou Darwin, fomos precedidos pelos símio, sendo o homem do presente apenas uma ponte, o futuro seria irremediavelmente dominado pelo super-homem.

No passado remoto
O símio (forma primitiva de existência)

No presente
O homem (ponte para o devir)

No futuro
O super-homem (personalidade dominante do futuro)

Aproximando-se de Maquiavel

"Amo os valentes; mas não basta ser espadachim - deve-se saber, também, contra quem sacar a espada!" - Zaratustra

Nietzsche, com sua admiração pelas personalidades fortes, determinadas a tudo, alinhou-se a Maquiavel. Ambos manifestaram sua preferência pelos homens titânicos que povoaram a época renascentistas. Audazes, egoístas, incorrendo no crime e na mentira, artistas do embuste e do engano, vivendo perigosamente entre a vida e a morte, aqueles tiranos, tais como Cósimo de Medici (1519-1575) ou do seu pai Giovanni de la Bande Nere (1498-1526), que eram capazes de, ao mesmo tempo que cometiam as piores barbaridades, proteger, estimular e patrocinar, a mais esplendorosa manifestação artística que a Europa conheceu - a cultura do Renascimento. Paralelo a eles, compartilhando o mesmo cenário dos príncipes mecenas e condotieros italianos, celebrou o artista-tirano, o aventureiro a la Benvenuto Cellini (1500-1571), que somava sua habilidade com a espada e o lidar com venenos com o mais refinado bom gosto artístico. Logo, uma das conclusões que Nietzsche chegou, ao interessar-se por aquelas personalidades, é de que em nome da preservação e do deleite da arte superior, perene, magnífica, qualquer sentimento ético ou humanitário passava a ser desprezível, senão mesquinho. As atribulações daqueles príncipes, com os quais simpatizou, lhe chegaram ao conhecimento por meio da cultivada amizade que ele estabeleceu com o Jacob Burckhardt, um suíço, grande historiador da cultura grega e renascentista, com quem ele privou na cidade de Basiléia a partir de 1870, e que escrevera um ensaio clássico sobre o tema (A Civilização da Renascença italiana, 1860).

Influência de Darwin

O darwinismo, difundido largamente após a publicação em 1859 da "Origem das Espécies", ensinou que a Natureza é amoral. A sobrevivência dos seres existentes não é determinada por critério éticos, nem pelas regras do Bem e do Mal. A seleção dos mais aptos não se faz obedecendo aos princípios morais, mas sim pelo desenvolvimento da capacidade de sobrevivência e de adaptação. As conseqüências morais lógicas extraídas dessa visão naturalista da existência, aplicadas à sociedade em geral, conduzem à eugenia de Francis Galton, não podendo ser outras senão em ter que concordar que somente os mais capazes têm direito à vida. Aos fracos cabe um destino inglório: a morte ou a submissão! - "o fraco não tem direito à vida". Nietzsche de certa forma, ainda que com desavenças, elaborou a metafísica do darwinismo, fazendo da sua filosofia uma espiritualização da teoria da seleção das espécies e da vitória do mais capaz, apresentada pelo grande naturalista.

Influência de Dostoiévski

Nietzsche impressionou-se com a literatura de Dostoiévski, o criador do personagem niilista radical que, por sua vez, era inspirado no raznochintsy, o solitário homem-idéia, um produto sócio-político do Movimento Narodniki, o populismo russo do século XIX. Personagem vivamente extraído da realidade russa do tempo do czar, é um ateu e materialista que vive em função de uma causa, a quem ele se dá integralmente, ao estilo de Netcháiev. Por ela, pela causa, dedica a sua vida, fazendo ele mesmo suas regras: "Se Deus não existe, tudo é permitido"(Ivan Karamazov). Nietzsche, ao contrário de Dostoievski, não lamentou o surgimento desse novo "animal-político", o niilista que vaga pelo mundo como um lobo solitário a serviço de algo que ele mesmo elegeu como razão de ser da sua existência. Exalta-o como um exemplo do super-homem que não se detém perante qualquer prurido moral na concretização dos seus objetivos, sejam eles quais forem. Ele, esse personagem fantástico, assume na totalidade as implacáveis conseqüências de um mundo sem Deus, tirando disso as devidas conclusões morais. Defendendo a emergência de uma nova ética, baseada nas virtudes do homem superior, ele vive completamente afastado das massas, sempre aferrado à sua tarefa de impor uma nova atitude perante à vida.

A projeção de Nietzsche

Politicamente, ele tanto foi acolhido por anarquistas, que na linha de Max Stirner (1806-56), que celebravam através da leitura dele o individuo-absoluto (o homem solitário, quase uma fera, que enfrenta a sociedade burguesa a quem vota desprezo e ódio), como também pelos nazi-fascistas, com a identificação com a teoria de uma elite de homens fortes dotados de vontade de domínio (uma nova raça superior liderada pela besta fera ariana, dominadora e implacável). Seja como for, em se tratando de política, são os extremistas ideológicos quem cultuam Nietzsche, não os democratas. O mesmo evidentemente não ocorre com os literatos e filósofos, tais como Heinrich e Thomas Mann, ou, mais recentemente, com Michel Foucault, que, independentemente das inclinações contra-revolucionária de Nietzsche, reconheceram nele uma fonte inesgotável de percepções originais, estéticas e existenciais, todas elas relevantes, e que muito contribuíram para a compreensão do homem moderno e para os fenômenos artísticos e políticos que acometeram o século XX.

Nietzsche e os quadrinhos

Suprema ironia deu-se com a idéia do super-homem - tornada popular com a ascensão de Hitler e dos nazistas ao poder na Alemanha dos anos trinta -pois terminou por cair no agrado popular (para bem possível escândalo de Nietzsche se vivo fosse) Nos Estados Unidos, de imediato, surgiram uma série de comics, de heróis em quadrinhos dotados de poderes extraordinários. O mundo então foi inundado por uma enxurrada de curtas historias ilustradas que fizeram por difundir e, claro, adulterar completamente o sentido original do super-homem imaginado por Nietzsche. De certa forma, ocorreu uma incrível metamorfose que fez com que uma ideologia elitista e exclusivista como a que Nietzsche defendeu, acabasse, depois de apropriada pela indústria da cultura de massas, por gerar um ícone cultuado pelas multidões de jovens anônimos do nosso século. No final das contas as massas fizeram por canibalizar o super-homem.

Confluindo para o super-homem

"Eu assento minhas coisas no Nada" ("Ich hab, mein Sach' auf Nichts gestellt) - Max Stirner - O Eu e o seu próprio, 1845

Podemos, em síntese, identificar quatro origens na configuração nietzscheana do super-homem

Inspiração - Fontes

Mitológica (grega)
Prometeu, o titã que ousou desafiar os deuses Olímpicos, passando a viver de acordo com seus princípios

Renascentista (italiano)
O príncipe maquiavélico, o tirano que utiliza-se operacionalmente dos valores morais em função do poder

Romântica (alemã)
O gênio, concepção do romantismo alemão, a grande personalidade que se confronta com seu época e vem anunciar um novo tempo, uma nova época, indiferente aos clamores contrários que provoca

Populista (russo)
O niilista russo, o raznochintsy, aquele que estava fora do sistema de castas da Rússia Czarista e que, revoltado, empenhava-se com fervor em torno da causa.

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