sábado, 15 de dezembro de 2007

ESCULPINDO O INDIVÍDUO

Em busca do indivíduo

Quem seria doravante o novo evangelista, o que sairia pelo mundo afora anunciando a chegada dos novos tempos e sendo ele mesmo o novo símbolo disso? Visto que o sacerdócio se esclerosara ou se exaurira durante a grande expansão ocidental, era preciso que alguém o sucedesse. As respostas foram, como não podia deixar de ser, múltiplas e contraditórias. Pensadores, filósofos, homens de letras de todas as latitudes, lançaram-se, cada um ao seu modo e de acordo com sua veneta, a descrever esse novo "animal-político" que, segundo eles, seria o novo paradigma do homem ocidental do futuro.

O Homem do Renascimento

Jacob Burckhardt, por exemplo, o historiador da cultura, encontrou-o na figura do homem do renascimento, um tipo idealizado que emergira da complexidade da vida política peninsular e da economia mercantil avançada que a Itália possuía à época da Renascença. Para Burckhardt todas estruturas da Itália daquela época funcionaram para ressaltar e proporcionar a ascensão do indivíduo extraordinário: do tirano sem escrúpulo (como César Borgia), do aventureiro-artista (como Cellini), do condottieri (com Don Corleone), o comandante de mercenários, ou ainda o escritor satírico que sozinho, com sua pena corrosiva aterrorizava o mundo do poder (como Aretino o fez). Em suas palavras:

"Foi a Itália, a primeira a rasgar o véu e a dar sinal para o estudo objetivo do estado e de todas as coisas do mundo; mas, ao lado desta maneira de considerar os objetos, desenvolve-se o aspecto subjetivo: o homem torna-se indivíduo espiritual e tem consciência deste novo estado...[tal como] se elevara o Grego em face ao mundo bárbaro. (...)No século XIV, a Itália quase não conhece a falsa modéstia e a hipocrisia. Ninguém tem medo de ser notado, de ser e aparecer diferente do comum dos homens." (Jacob Burckhardt - A Civilização da Renascença italiana, especialmente na IV parte)

Um titã a serviço do Progresso

Para o Conde Saint-Simon (no "Do sistema industrial", 1820) e seus seguidores, particularmente para Prosper Enfantin, este novo elemento responsável por transformações radicais seria o capitalista empreendedor e inovador - o capitão da industria que com arrojo e visão destemida, descortinava, graças ao avanço da ciência e a expansão da tecnologia, um quadro de progresso para a humanidade através de obras espetaculares (tais como as de Ferdinand Lesseps, que abriu para a navegação o Canal de Suez, em 1869). O herói saint-simoniano era um titã de carne e osso, lidando com finanças, liderando forjas de aço e colossais empreendimentos espalhados por um mundo ainda a ser conquistado, ao mesmo tempo em que, cartesianamente, domava a natureza ao seu redor. Detestando o parasitismo da aristocracia e do clero, ele também deveria "retificar as linhas fronteiriças do bem e do mal". Esse moderno Messias do Progresso, do "iniciador científico", do implantador da "sociedade industrial", não leva de maneira uma vida imaginativa ou sentimental, senão que "uma sucessão de experiências". Para tanto ele devia seguir algumas regras que o habilitem a levar uma vida produtiva e criativa:


Regras do saint-simoniano

1º - Levar, enquanto ainda dotado de vigor, uma vida a mais original e ativa possível

2º - Inteirar-se cuidadosamente de todas as teorias e de todas as práticas

3º - Recorrer a todas as classes sociais e colocar-se pessoalmente em cada uma delas, mesmo as mais diferentes, chegando inclusive a criar relações que não existiram antes

4º - Empregar a velhice em resumir as informações coletadas sobre os efeitos que resultaram das suas ações, para estabelecer novos princípios sobre a base deles


O Niilista revolucionário

Destoando desses modelos, que afinal enalteciam as Artes e o Progresso, um novo tipo de indivíduo começou a ser esboçado pela intelligentsia russa na século XIX. O herói niilista, o raznochintsy, o tipo fora da classificação social conhecida, que elegia, inspirado na filosofia do romantismo alemão e no socialismo francês, a entrega total a uma causa como a razão do seu destino. Ele desprezava os valores em que vivia, elegendo o nada (niil) como ponto de afirmação e de partida.

Origem literária

Literariamente ele tornou-se um personagem fascinante desde que apareceu na pele de Bázarov, na novela "Pais e Filhos" de Ivan Turguéniev, em 1862, e principal responsável pela difusão da palavra "niilista". Dostoievski, a seguir, apresentou-o como um radical que colocava-se acima da lei e de tudo o mais, acreditando-se superior e com "direito ao crime", como o seu personagem Raskhólnikov, no celebrado romance "Crime e Castigo", de 1867. Um lobo solitário que rondava a sociedade aristocrática ou burguesa, imaginado mil maneiras de levá-la a destruição, sempre pronto a apresentar planos de regeneração social através da violência individual ou revolucionária. A arte para ele, assim como estava, manifestação do supérfluo, só servia às classes cultas. Era preciso engajá-la, fazer dela um instrumento de emancipação dos povos agrilhoados. Só assim ela teria uma razão de ser.

O niilista, um perdido

Acredita-se que a forma mais extremada desses niilistas foi assumida pelo terrorista Sérgio Netcháiev (um seguidor de Bakunin, que, entusiasmado disse dele "São magníficos esse jovens fanáticos, crentes sem deus, heróis sem frases"). Ele, juntamente com Tkachév, expôs no "Programa das ações Revolucionárias", de 1869, uma verdadeira cartilha do terrorista, o ideal do comportamento niilista.


O Catecismo do Revolucionário

1 - O revolucionário é um homem perdido. Não tem interesses próprios, nem causas próprias, nem sentimentos, nem hábitos, nem propriedades; não tem sequer um nome. Tudo nele está absorvido por um único e exclusivo interesse, por um só pensamento, por uma só paixão: a revolução.

2 - No mais profundo do seu ser, não só de palavra, mas de fato, ele rompeu todo e qualquer laço com o ordenamento civil, com todo o mundo culto e todas as leis, as convenções, as condições geralmente aceitas, e com a ética deste mundo. Será por isso seu implacável inimigo, e se continua vivendo nele será somente para destruí-lo mais eficazmente.

3 - O revolucionário deprecia todo o doutrinarismo: renunciou a ciência do mundo, deixando-a para a próxima geração. Ele só conhece uma ciência: a da destruição.

4 - Despreza a opinião pública. Despreza e odeia a atual ética social em todas as suas exigências e manifestações. Para ele é moral tudo o que permite o triunfo da revolução, e imoral tudo o que a obstaculizar.

5 - O revolucionário é um homem perdido. Implacável com o estado e, em geral, com toda a sociedade privilegiada e culta, de quem ele não deve esperar piedade nenhuma... Cada dia deve estar disposta a morte. Deve estar disposto a suportar a tortura

6 - Severo consigo mesmo, deve ser severo com os demais. Todo os sentimentos ternos e abrandados sentimentos de parentesco, de amizade, de amor, de agradecimento e inclusive de honra, devem ser sufocados nele por uma única e fria paixão pela causa revolucionária.

7 - A natureza de um autêntico revolucionário excluiu todo o romantismo, todo sentimentalismo, todo entusiasmo e toda a sedução.. Exclui também o ódio e a vingança pessoal. A paixão revolucionária convertida nele em paixão de cada dia, de cada minuto, deve ser seguida pelo cálculo frio. (...) Liguemo-nos com o mundo livre dos bandidos, o único autenticamente revolucionário na Rússia.

8 - Reagrupar este mundo numa força invencível; eis aqui a nossa organização, nossa conspiração, nossa tarefa.

O super-homem de Nietzsche

Chega-se por fim a idéia do super-homem (Übermensch) de Nietzsche, que também constituiu-se numa formidável tentativa intelectual do idealismo e da metafísica alemã (já presente no "Fausto" de Goethe, e no "Ich!" de Fichte) em dar sua contribuição para a construção desse novo indivíduo que, para o pensador, certamente emergiria no vindouro. Ele é pois um amalgama e também uma síntese das idealizações anteriores. Porém o super-homem nietzscheano não esboça nenhuma ação para prover as multidões, nem vem para libertá-las de regimes injustos e opressores. É um egocêntrico, que, ao contrário do herói niilista, irá tentar opor-se às multidões, às massas. Ele se identifica com a força e com a soberba e não com o desvalimento e a tibiez. Com o punho duro, fechado, que brada uma exigência ou uma ameaça, e não com a mão trêmula e arqueada do pedinte. Ele é corpóreo, é sensual, ama a vida e fascina-se pelo domínio, de si e o que exerce sobre os outros. Quer ser grande, quer ser reconhecido, pois "o mundo gira em torno dos inventores de valores novos: gira invisivelmente; mas em torno do mundo giram o povo e a glória; assim anda o mundo".

As novas tábuas do super-homem

Despreza a religião cristã, com seu Deus morto, cuja ética ele considerou uma espiritualização da antiga casta dos sacerdotes que se juntou à fraqueza, à pobreza e à covardia da gente comum. O Cristianismo é uma teologia de ressentidos, uma fé de enfermos e de desgraçados. Liberto das cangas pesadas e inibidoras da moralidade cristã e burguesa em que foi educado e formado, o super-homem, seguramente, irá forjar "com companheiros que saibam afiar a sua foice" uma nova moralidade. Habitando "a casa da montanha" ou a floresta, incessantemente superando a si mesmo, altivo como a águia e astuto como a serpente que acompanham Zaratustra, o seu anunciador, ele, com seus colaboradores, chamados de "destruidores e desprezadores do bem e do mal", inscreverá "valores novos ou tábuas novas". Ele é o devir a ser, ele é o futuro.

As características do super-homem

Como se reconhece
Pela personalidade extraordinária e pelo caráter forte, inquebrantável. Não pelo nascimento nem pela educação, mas pela inequívoca presença e fascínio que exerce sobre os demais. Por sua olímpica arrogância.

Onde ele se encontra
No futuro, no devir a ser, ele trará as novas tábuas não mais presas aos conceitos do bem e do mal

Qual a sua morada
A casa da montanha, os altos picos, acompanhado pela águia e pela serpente, bem distante da moralidade convencional e do cristianismo

Quais as leis que obedece
As que ele mesmo faz. O super-homem é o legislador de si mesmo e o autor das suas próprias e exclusivas regras

O que ele ama
O seu corpo, do qual não tem vergonha. Ele se exibe, se mostra, aceita a sensualidade como natural e não tem a mínima idéia do que é ou representa o pecado. A vida é proliferação e exuberância, é domínio, amor e crueldade. Em seguida a isso, ama os valentes, os corajosos, os que dizem sim a vida, os audazes que não se prendem aos limites e não temem o desconhecido.

Quais são seus inimigos
Os sacerdotes, os pregadores da morte, seres vingativos que detestam a vida e veneram o além. O cristianismo com sua moral de escravos, de gente impotente e ressentida com a vida.

O que ele detesta
A canalha, o populacho, porque envenena tudo o que toca. O seu sentimentalismo mela tudo, tem bocarra grotesca e sede insaciável. Chega a duvidar que a vida tenha a necessidade deles. Não tem consolo para o corcunda, para o doente, para o fraco e covarde. Quer que eles desapareçam, que sumam.

O que mais odeia
A idéia de igualdade defendida pelos democratas e pelos socialistas. O injusto é tentar fazer iguais os desiguais.

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