sábado, 15 de dezembro de 2007

EM DEFESA DA CULTURA

Friedrich Nietzsche estava se recuperando em Basiléia, na Suíça, de uma doença que o atacara na Guerra Franco-Prussiana de 1870 (ao prestar serviço de assistência aos feridos do exército alemão), quando chegou-lhe uma terrível notícia. Em março de 1871 a população de Paris havia se rebelado contra o governo derrotado. Pior, os operários estavam pondo fogo nos grandes prédios públicos e depredando as obras de arte espalhadas pela capital francesa, entre elas a bela Coluna de Vendôme. Era a Comuna de Paris que havia sido proclamada no dia 18 de março de 1871, que se tornaria um dos mais violentos levantes populares da Europa do século XIX.

Foi um choque para ele. Ainda estonteado pelas informações que recebera, refugiou-se na casa do historiador da cultura Jacob Burckhardt (1818-1897), o célebre helenista e historiador da cultura, pesquisador da Itália renascentista, que igualmente estava desconsolado. Acreditaram os dois amigos que toda a arte ocidental estava ameaçada. Séculos de beleza estavam em vias de ser totalmente devastados pelo vandalismo das massas parisienses revoltadas.

Os episódios da Comuna de Paris foram fundamentais para o acirramento das posições políticas de Nietzsche. Onde Karl Marx viu um momento de bravura popular, Nietzsche identificou o surgimento de uma nova barbárie que era preciso deter a qualquer custo. A Comuna será, pois, o ponto de partida para uma série de escritos que ele desenvolveu ao longo dos próximos vinte anos seguintes e que o colocaria ao lado dos antidemocratas, dos anti-socialistas, e contra todo e qualquer tipo de pregação que visasse a igualdade, tornando-o um apologista da distinção.

Nietzsche como Anticristo

O ataque direto que Nietzsche desencadeou contra o cristianismo radicalizou-se com o seu "O Anticristo" (Der Antichrist), mas foi inicialmente exposto na A genealogia da moral (Zur Genealogie der Moral), de 1887. Argumentou que a ética cristã era uma moral de escravos, de gente fraca e vil que havia, através do cristianismo, desvirilizado o espírito senhorial e dominante dos aristocratas. A origem desse processo, segundo Nietzsche, remontava à aos tempos da Palestina ocupada pela raça romana, raça de senhores. Os judeus, impotentes em poder livra-se deles, terminaram por aperfeiçoar a psicologia do ressentimento provocando uma inversão dos valores. Tudo aquilo que era "débil", "humilde", "medíocre", eles apresentaram como "bom", enquanto palavras tais como "nobreza', "honra", "valor", foram vistas como "mal". O resultado desse trabalho de sapador, feito por séculos de pregação cristã, foi o enfraquecimento das energias vivificantes da sociedade ocidental, especialmente das suas elites, na medida em que o "doentio moralismo ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos".

A rebelião dos escravos

A rebelião dos escravos na moral se deu devido a sua impotência para destruir com a escravidão (ou o seu avalista, o poder romano). A nova religião - o cristianismo - tornou-se o instrumento deles para canalizar o seu ódio impotente, um "ódio que tinha a contentar-se com uma vingança imaginária". O produto desse ressentimento foi fazer com que os escravos, a "raça inferior e baixa", tornassem tudo aquilo que fosse digno e nobre em algo pecaminoso. Transformaram a prostração e a pobreza em virtude, e a abjeta covardia de dar o outro lado da face em caso de agressão, num ato sublime de perdão.

Via, portanto, o cristianismo como uma doença maligna que havia atacado o Império Romano, contribuindo para que ele sucumbisse vitimado por uma espécie de "febre das catacumbas". E, pior, "a mentalidade aristocrática foi minada até o mais profundo de si própria pela mentira da igualdade das almas; e se a crença na prerrogativa da maioria faz e fará revolução - é ao cristianismo que devemos sua difusão. São os juízos de valores cristãos que qualquer revolução vem transformar em sangue e crime. O cristianismo é uma insurreição do que rasteja contra o que tem elevação: O Evangelho dos pequenos tornado baixo".

A volta às energias aristocráticas

Portanto, os nossos conceitos de bem e de mal eram estratagemas dos derrotados, que fizeram a façanha de substituir os valores superiores da nobreza. Dessa forma retiraram dela, enternecendo-a com rogos de piedade, a seiva necessária para aplicar uma política de mão firme para conter esse moderno movimento neobárbaro, cuja carantonha havia emergido na Comuna de Paris de 1871. O socialismo não passava de um "cristianismo degenerado [...] o anarquista e o cristão vêm da mesma cepa [...]". Era preciso, pois, primeiro, expurgar de si esta moral de gente covarde. Retornar às fontes de energia aristocráticas, aplicar uma política da impiedade, onde somente o mais nobre e o mais viril fosse tomado em consideração.

"Deus está morto!" Foi sua mais célebre proclamação. Como conseqüência, os homens deveriam buscar valores que transcendessem a moral convencional divulgada pelo cristianismo; um retorno "à ordem de castas, à ordem hierárquica [...] para a conservação da sociedade, para que sejam possíveis tipos mais elevados, tipos superiores - a desigualdade dos direitos é a condição necessária para que haja direitos". Concluiu dizendo: "Quais são aqueles que mais odeio no meio da canalha dos nossos dias? A canalha socialista, os apóstolos [...] mirando o instinto, o prazer, o contentamento do trabalhador no seu pequeno mundo - que o tornam invejoso, que lhe ensinam a vingança [...] a injustiça nunca reside na desigualdade dos direitos, ela está na reivindicação de direitos iguais".

Nietzsche e a História

Nietzsche rompeu também com a relação entre a Filosofia e a História que havia sido estabelecida por Hegel, entendida esta última como uma crônica da racionalidade. Considerava que "o excesso de história" parecia "hostil e perigoso à vida", limitador da ação humana, inibindo-a. Devia-se ousar, avançar perigosamente para o ilimitado, porque a racionalização histórica levava o homem a "perder-se ou destruir seu instinto fazendo com que ele não ouse soltar o freio do 'animal divino' quando a sua inteligência vacila e o seu caminho passa por desertos. O indivíduo torna-se então timorato e hesitante e perde a confiança em si..." terminando por fazer com que "a extirpação dos instintos pela história transforma os homens em outras tantas sombras e abstrações."

Instinto contra a Razão

Nietzsche recolocou claramente o confronto outrora posto pelos românticos quando opunham os instintos - geralmente entendidos como uma manifestação da pureza e autenticidade humana - à razão, símbolo do utilitarismo cinzento e materialista.

Opunha-se, como conseqüência, à idéia de que os acontecimentos históricos ensinavam os homens a não repeti-los, defendendo a teoria do eterno retorno, de remota inspiração na filosofia pitagórica e na física estóica, que compreendia a aceitação de periódicas destruições do mundo pelo fogo e seu ressurgimento. Desta forma, não só tudo poderia acontecer novamente como tudo poderia ser tentado outra vez.

Em busca do super-homem

A idéia da necessidade da formação de uma nova elite - não contaminada pelo cristianismo e pelo liberalismo - e que ao mesmo tempo os transcendesse, acometeu Nietzsche desde muito cedo. Pode-se dizer que já pensava assim nos seus tempo do internato em Pforta. Já naquele tempo mostrou-se obcecado pela formação de uma seleta falange intelectual responsável pela transmutação de todos os valores, cuja obrigação e dever maior era a proteção de uma cultura superior ameaçada pela vulgaridade democrática.

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