sábado, 15 de dezembro de 2007

NIETZSCHE FILÓSOFO

A filosofia mundana

Coube a Kant definir a existência de dois tipos de filosofia, a acadêmica (comprometida com um sistema de conhecimento racional, presa aos interesses específicos dos pensadores e dos profissionais), e a mundana, que abrange a todos, que não tem limites em suas ambições. A primeira, é antes de tudo um exercício técnico, professoral, a segunda, literário e ideológico, geralmente provocando enormes ressonâncias na sociedade. Evidentemente que Nietzsche preenche inteiramente o segundo quesito. A prosa dele poucas vezes recorre aos conceitos reconhecidos como "oficiais" da filosofia tradicional, quanto à terminologia científica ela quase sempre aparece nela oculta atrás de uma roupagem poética ou mesmo sacerdotal. Viu a filosofia não como uma atividade especulativa, um estiolado exercício intramuros feito por um especialista, apartado das coisas da vida, mas "uma procura voluntária" até das "coisas mais detestáveis e infames". Uma "peregrinação através dos gelos e do deserto" atrás de uma "história secreta", por meio de "um olhar diferente do que até agora se filosofou".

Uma filosofia para a ação

A filosofia dele não é apenas iconoclástica no sentido de propor a "quebra das tábuas" ou de apresentar uma outra leitura da tradição do pensar ocidental (quando, por exemplo, aponta Sócrates como "decadente"), também o é no sentido do próprio filosofar. Nada mais distante dele do que a recomendação estóica da ataraxia, a procura da quietude, do ócio reflexivo, do apartar-se das paixões. Ou ainda da recomendação de Spinoza para que a conquista do entendimento se faça sempre acompanhada de um não ao riso, ao deplorar e ao detestar.

Ela, a doutrina nietzschiana, clama por movimento, é uma convocação a toque de caixa e clarim de todas a energias vitais do indivíduo superior, ela mesma é uma pulsão incessante. Neste sentido é anti-intelectualista por excelência. Ao acentuar o ato e não a reflexão ou a meditação (que aliás é uma prática abolida do seu receituário, por ter "sido posto em ridículo o cerimonial e atitude solene do que reflexiona"), privilegia o "experimental", como ele mesmo definiu sua filosofia (Vontade do Poder - 476). Se há indecisão entre Apolo e Dionísio, entre a razão e a emoção, ele recomenda seguir o deus das bacantes.

Neste nervosismo para cumprir com a obra (com a qual todo seguidor de Nietzsche obrigatoriamente deve comprometer-se), "uma máquina em movimento contínuo", a racionalização torna-se um impedimento, um freio intelectual a ser desativado ou destravado. Não que a razão seja dispensada mas sim que ela apenas deverá servir como um instrumento da ação e não para atravancá-la. Pode-se dizer que os símbolos mais precisos do seu filosofar são a ponte (a travessia, o ir para o outro lado, o transcender), e o trapézio (a busca do perigo, do risco, de tentar viver no limite máximo das experiências possíveis), para fazer da vida uma grande aventura. Assim despreza os que acusam-no de fomentar a hybris, o excesso de ação, a falta de limites, o exagero.

Uma filosofia da solidão

Heidegger disse ter sido Nietzsche o primeiro a conceber metafisicamente o momento em que "o Homem se apressa a assumir o poder na terra na sua totalidade". Sobre esse novo homem, sobre esse super-homem, recaem pois todas a responsabilidades. Ele não tem mais para quem apelar tal como o último dos homens ainda fazia no santuário em ruínas do seu Deus morto. Logo, deve fazer crescer dentro de si forças vitais e existências extraordinárias: "Sobe, pensamento vertiginoso, sai da minha profundidade!"....

"O meu abismo fala. Tornei à luz a minha última profundidade!"(Assim Falou Zaratustra, III, 1). Não poderá, esse espírito livre, ter contemplação com suas fraquezas, ter compaixão dos outros ou de si lhe é inominável. A palavra de ordem é endurecer! Fazer do seu interior, do corpo e mente, uma intransponível couraça, capaz de desviar de si o sentimentalismo e a piedade. Para Nietzsche, afinal, sempre pareceu inaceitável um Deus todo-poderoso que se deixasse levar por preces, ladainhas ou louvores, dos humilhados e ofendidos.

Esse ser de Nietzsche tem um fim em si mesmo, ele é a fonte exclusiva da sua energia, ele é o seu próprio consolo porque, afinal, "Deus está morto!" Mas de onde extrair firmeza para o extraordinário desafio que é viver num mundo sem Deus? A que reservas humanas recorrer? Justamente aquelas, as mais ocultas, as que foram sufocadas pelos valores religiosos e pela racionalidade dos metafísicos, as virtudes do instinto, da preservação, da agressão, "o lado mais poderoso, mais temível, mas verdadeiro da existência, o lado em que sua vontade mais exatamente se exprime"(Vontade de Poder - 476). Deve-se explorar esse interiores, "nossas plantações e jardins desconhecidos" .. pois "somos todos vulcões esperando a hora da erupção"(Gaia Ciência, I,9). Esse titã solitário e viril, tal como um deus de si mesmo, busca então as alturas para fugir do ar empestado pelas multidões e pelo agito dos mercados, procurando lá em cima nas estratosferas a companhia das estrelas. É com ele que as águias se identificam.

O homem é um devir

Seguindo a lógica de Darwin, que via as espécies em luta permanente para manterem-se e adaptarem-se, afirmou que o homem "é um animal ainda não definido", é algo que ainda está em construção. Não obedecendo ao desígnio divino mas sim as suas pulsões e instintos de sobrevivência, de uma natureza humana que ama lutar, o homem faz a si próprio. Fazendo do agón, do combate, a sua razão de ser, até mesmo o conhecimento superior que adquire resulta de um duelo, provido que foi pela faísca resultante do entrechocar da espadas umas contra as outras. Ao redor dele tudo é um guerra civil, contra os outros e contra as adversidades em geral. Ele é um perpétuo superador de si mesmo.

Portanto, ele não vê na Natureza uma mãe dadivosa e boa como Rousseau a imaginou, mas sim uma madrasta que ao mesmo tempo que lhe permite a vida é avara nas suas benesses: exuberante na sua licenciosidade mas mesquinha nos seus benefícios. Exatamente por isso, a conquista seja lá do que for tem um preço e um sabor incomparável. A decisão de enfrentar as coisas porém não é uníssona e nem traz resultados iguais. Alguns se decidem e vencem, os fortes; outros não, os fracos, os covardes. Merecem eles viver? Cabe à árvore da vida suportar em seus galhos esses frutos inúteis, bichados, estragados, sem esperar que nenhum vento salutar os abale e os derrube?

A psicologia de Nietzsche

A teoria do ressentimento como expressão dos vencidos da vida é uma apreciável, se bem que questionável, contribuição de Nietzsche à psicologia moderna. Tomou-a da leitura que ele fizera do "O homem do subterrâneo", de Dostoievski, um relato tortuoso de um misantropo neurótico. Se Hegel estruturou sua concepção da hierarquia social e da formação do estado a partir de um duelo primeiro, onde o vencido, para manter-se vivo aceitava ser escravo e reconhecia no vencedor o seu senhor (ver "Fenomenologia do Espírito", 1807), Nietzsche também irá remontar à esse hipotético duelo para extrair outras conseqüências.

O embate dele se dá na Palestina no tempo da ocupação romana, quando a casta de sacerdotes judeus, impotentes em derrubar o conquistador, destilou para todos os lados o veneno do ressentimento. Tudo aquilo que era associado ao romano, o que era nobre, altivo, corajoso, passou a ser denunciado como "mau". Por outro lado, o que era vil, fraco e covarde, pareceu-lhes ser "bom". Dessa forma, por meio dessa sutil e corrosiva artimanha, deram começo ao trabalho de sapa visando atingir a solidez psicológica do vencedor. Passado algum tempo, os vencedores, os nobres romanos, minados por esse discurso dos cupins sacerdotais, deram-se por vencidos. Abandonaram ou abdicaram os seus princípios, o que até então lhes dava coragem, capitulando finalmente frente a barbárie invasora.

A linguagem do fraco

Havendo uma linguagem do forte, há por sua vez uma do fraco, uma linguagem do rebanho - a amarga retórica dos cativos. É dela que deve-se precaver. Há nela um evidente discurso do ressentimento, que atribui todas as desgraças do mundo e da sua vida aos outros. Incapaz de assumir a sua responsabilidade pessoal (atributo apenas dos fortes), seja lá no que for, o medíocre, o pequeno, o de " alma estreita", transfere a causa dos seus inúmeros fracassos e decepções a tudo o que está além e acima dele (em Deus ou no diabo, nos nobres, no senhor, no patrão, etc..). O sentimento melindrado do rebanho, expressão coletiva do ordinário e do baixo, volta-se então contra o que se destaca, para o excepcional, acusando-o com dedos numerosos e trêmulos de não ter fracassado e sucumbido na vida como os demais. Condena igualmente "as paixões que dizem sim": a altivez, a alegria, o amor do sexos, a inimizade e a guerra - enfim, "tudo o que é rico e quer dar, gratificar a vida, dourá-la, eternizá-la e divinizá-la - tudo o que age por afirmação". (A Vontade de Poder - 479)

Interessa constatar que Nietzsche foi um arguto observador das terríveis mazelas e distorções psicológicas que a dominação de um ser humano sobre o outro provoca. De certa forma ele inverte o primado marxista de que as idéias dominantes são as da classe dominante. Para Nietzsche, ao contrário, são os dominadores que têm que precaver-se com as perigosas e debilitadoras idéias dos dominados, pervertidas que foram exatamente por terem sido de alguma forma oprimidos, o pegajosos lodo plebeu que tudo envolve, invade e abala.

Homem, um animal doente

O dominado, o pequeno, o plebeu, é um ser aviltado. Ele não tem palavra nem se guia pela verdade. Vive de estratagemas, quase todos bem longe do que poderiam ser considerados como dignos ou honrados. Isto, por sua vez, ira fazer com que Nietzsche denuncie a existência de um universo externo ao indivíduo superior, composto, acima dele, por um poderosos discurso moral, religioso e metafísico, repressor, e, abaixo dele, pelo ressentimento do rebanho, que faz com que as pulsões naturais, fonte das suas características maiores que alimentam o seu talento e o seu desafio, impossibilitadas de virem a se realizar, voltem-se para o seu interior, corroendo-o, aviltando-o, sufocando-o. E o que diz essa acusação opressora? Que tudo aquilo que percorre no íntimo do humano, que seus instintos e fantasias outras que lhe são sugeridas nos seus sonhos, são em geral pecaminosos, indignos, profanadores de uma pureza que ele deveria preservar para poder salvar-se. Que, dizem-lhe mais, a busca do ser bem dotado pela afirmação pessoal e pelo exercício legitimo das suas qualidades não passa de orgulho, de hybris, de ambição desmedida. O resultado disso, dessa crueldade para com a própria espécie, é que o homem, psicologicamente mutilado, "torna-se um animal doente". É um ser eternamente atormentado por ter que viver com uma carnalidade e sensualidade latente, exigindo coisas que ele sempre terá que negar, ocultar, contornar e sepultar, obrigando-o a rastejar frente a deuses que o julgam culpado.

Os negadores da vida

De certo modo, ainda que por outro ângulo ideológico, Nietzsche segue a tarefa da Ilustração no seu combate ao sacerdote. Não se trata somente de alguém que vive da exploração da superstição e da crendice dos simples, que quer manter o povo na ignorância para usufruir de prestigio e poder que a posição clerical lhe confere. O homem de preto para Nietzsche é algo ainda pior. É um inimigo da vida, ele persegue com denodo toda e qualquer forma de expressão de autenticidade, de criatividade, de sensualidade, denunciando-a como fruto do orgulho e da arrogância, tratando-as como uma perigosa manifestação do pecado. É, pois, toda uma cultura religiosa milenar, herdada dos mandamentos judaicos e do clericalismo romano, estruturada nos mandamentos do "Não!"( "Não invocarás ..não roubarás...não matarás, etc...), que deve ser denunciada em favor de uma doutrina da afirmação, que enfatize um altissonante "Sim!"

Ele, o sacerdote, a pretexto de salvar a alma, é o responsável pela doença do homem. Com a morte de Deus, a existência do bem e do mal se volatilizou, a prédica religiosa não tem mais nenhum sentido. Mantê-la apenas prolonga o mal estar entre os humanos. Aconselhar, ainda assim a todos, a mansidão, a humildade, a tolerância e a caridade, só avilta ainda mais as gentes, além de envergonhar os homens de força e talento. Desconsiderando serem eles os portadores de uma exuberância animal, inibem ou mutilam a mais autêntica potencialidade criativa que possuem.

Conclama assim que Jesus Cristo, martirizado na cruz, ícone da dor e do sofrimento, seja sucedido por Dionísio, o deus pagão da alegria, do delírio místico, que vem para celebrar e regozijar-se com a vida, e a coroa de espinhos que apresilhava a testa sangrada do galileu, substituída fosse pelos jocosos chifres do deus-bode dos velhos pagãos. Que, enfim, o inspirador da castidade, da abstinência e do jejum, desse lugar ao estimulador do frenesi, da sensualidade e do exagero. Em termos freudianos trata-se da libertação do id e do ego das imposições do superego.

A posição da filosofia de Nietzsche

Habermas, expondo o confronto que estabeleceu-se na Alemanha do século XIX entre as duas correntes opostas emergidas ambas da filosofia de Hegel, os hegelianos de esquerda, ou jovens hegelianos (Marx, Bauer, Hess, Ruge, etc..) e os de direita (Rosenkranz, Hinrichs e Oppenheim), viu em Nietzsche um repúdio e uma superação delas. Para os hegelianos de esquerda tratava-se de erigir uma nova sociedade que definitivamente ultrapassasse aquela em que viviam, para os de direita, ao contrário, apontavam a religião e o estado, como os únicos capazes de voltar a aglutinar uma sociedade civil ameaçada de dissolução. Perfilou-se deste modo aquilo que Moses Hesse chamou de "o partido do movimento" e o "partido da permanência". Para muitos pensadores, Hegel é considerado o paradigma da filosofia alemã moderna.

Frente a esse verdadeiro cabo-de-guerra entre a revolução e o conservadorismo, que dominou o cenário alemão da época de Bismarck, Nietzsche, rejeitando o radicalismo revolucionário bem como o imobilismo reacionário, dedicou-se a um trabalho de sapa para abalar os fundamentos deles, negando-se a aceitar fosse o governo da massas como o regime dos reis. A síntese disso foi o super-homem que, simultaneamente, afastava-se das multidões e dos socialistas e desconsiderava os sacerdotes e os monarcas.

Partido do movimento
Jovens hegelianos que pretendiam converter a filosofia numa prática capaz de conduzir a sociedade ao socialismo e ao igualitarismo
Nietzsche e o neo-romantismo
Opõe-se a ambos , reservando ao super-homem um papel de dupla superação, da revolução e da reação
Partido da permanência
Hegelianos de direita, que apenas desejam manter a dinâmica da sociedade burguesa, desde que ela não corroesse os primados sagrados da religião e do estado.

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