sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O PROGRAMA DO SUPER-HOMEM

O grande programa do super-homem, portanto, estava pronto. Tratava-se de uma abrangente reforma que procurava dar um senso de propósito a uma existência na terra abandonada pela deidade. Os interesses de poucos deverão ter proeminência sobre todos os demais, a força do espírito sobrepujará a fraqueza, a saúde do espírito sucederá qualquer tibiez, a guerra dos espíritos substituirá a paz. Como conseqüência lógica disso, as necessidades dos indivíduos excepcionais terão sempre precedência contra o espírito nivelador estabelecido pela gravitação imposta pela mediocridade. O mundo filisteu, dominado pela pasmaceira da vida rotineira deverá dar lugar à audácia, à dança, e à destreza intelectual. A de viver-se perigosamente.

A revolta contra o tédio

A pregação de Zaratustra foi entendida por George Steiner como uma desconformidade, entre tantas outras, com a vida tediosa da sociedade burguesa fin de siècle, onde o mundo aventureiro e belicoso do aristocracia cedia espaço ao utilitarismo frio, prático e calculista, do homem burguês ocidental. Uma época absolutamente banal na qual a sociedade científico-positivista via-se crescentemente dominada pelo espírito liberal-igualitário, que impedia o afloramento da individualidade singular, a emergência do grande homem, da personalidade fora de série, que o profeta vinha pressagiar. Um estado de espírito que encontrou sua melhor expressão no dito do poeta Théophile Gautier: "Prefiro a barbárie ao tédio!"

A vontade de poder

Se Schopenhauer, um pessimista assumido, desenvolveu a teoria de que a vida não tinha nenhum sentido racional e que todos nós éramos apenas expressões da vontade, uma vontade de viver instintiva, animal, cósmica, que estava entranhada na natureza e em nós, Nietzsche irá atribuir à vontade uma outra dimensão. Influenciado pelas teses de Charles Darwin (1809-1882), como a luta pela vida e a sobrevivência do mais apto, ele considerou a vontade (Wille)como uma força positiva sobre o Homem, uma energia que mobiliza-o, fazendo-o ultrapassar os obstáculos e vencer os desafios que se lhe antepõem. Daí reduzir quase tudo na existência à luta pela vontade de poder (Wille zur Macht).

A necessidade vital que o homem tem de sempre lançar-se compulsivamente sobre os demais objetos da natureza e sobre o resto da sociedade visando o seu domínio, estaria assentada na antiga premissa de que "cada um de nós deseja, no possível, ser o senhor de todos os homens, e preferivelmente deus". Esta vontade de poder é vital e amoral, independe de critérios éticos, é uma espécie de pulsão incontrolável que faz com que o homem enfrente todas as vicissitudes para saciá-la (concepção que foi recentemente reaproveitada por Michel Foucault na sua "microfísica poder", e com a visão de que a sociedade é um conflito permanente entre poderes, que transcendem a simples luta política partidária e ideológica, englobando as políticas clínicas, da saúde pública, dos sanatórios e das prisões).

A política de domínio

Isto conduziu a que Nietzsche aceitasse e enaltecesse qualquer política de domínio, acreditando-a inevitável. No Além do bem e do mal (Jenseits von Gut und Böse), concluída em 1886, e que é de certa forma, a complementação final em prosa do Zaratustra, afirma que "a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração".

A vontade dos mais fortes

Evidentemente que esta manifestação de vontade de poder, em sua plenitude, só pode ser exercida pelos mais fortes. Aos fracos cabe a obediência respeitosa ou aceitar o extermínio silencioso. Esta figura vitoriosa, altaneira, que impõe sua vontade sobre tudo e todos, não pode ser constrangida pela moral comum dos homens vulgares, dos preceitos seguidos pelas maiorias, ou pelo imperativo categórico kantiano, que desejava tornar toda e qualquer ação numa lei universal.

O mais forte faz suas próprias regras, estabelece para si qual é a melhor conduta e não espera de forma nenhuma que os outros o sigam (é o "façam o que eu digo e não o que eu faço" de Napoleão). Ele não deve estranhar se o consideram duro e insensível, quiçá até desumano, pois estes são os atributos do super-homem, que trafega soberbo no seu Olimpo particular e só tem gestos generosos para com os demais na medida em que isto o enaltece ou satisfaz.

Despreza "o covarde, o medroso, o mesquinho o que pensa na estreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e sobretudo o mentiroso - é crença básica de todos os aristocratas que o povo comum é mentiroso". Ao homem comum, ao fraco em geral, só lhe resta a serventia de ser um degrau de apoio sobre o qual a figura de escol deverá calcar em sua ascensão os cimos mais elevados de uma existência superior.

Uma contra-utopia

Nietzsche de certa forma esboçou, com sua prosa impressionista, o que poderíamos considerar como uma contra-utopia ou uma utopia direitista. Na sociedade futura que imaginou, a harmonia seria estabelecida apenas entre os que se consideravam iguais - a nova nobreza formada pelos super-homens - que regeriam uma comunidade rigidamente hierarquizada, despida da moral comum, dominada pela "besta loura" que exerceria sua autoridade baseada numa impiedosa vontade de poder.

A obra de Nietzsche, sob o estrito ponto de vista político e ideológico, foi a mais profunda e radical manifestação intelectual contra as grandes cartas e documentos que se posicionaram pela e igualdade e liberdade que vieram à luz na cultura ocidental, desde a Declaração dos direitos do homem e do cidadão da Revolução Francesa, passando pelo Manifesto comunista de Marx e Engels, até as leis sociais da sua época.

"Eu sou dinamite!"

O próprio Nietzsche nunca deixou de ter consciência de que suas posições, assumidamente radicais, teriam conseqüências terríveis nos anos vindouros. Que para ele seriam tomados por uma reação contra-revolucionária de dimensões espantosas. No Ecce Homo, por exemplo, a sua autobiografia publicada somente em 1908, oito anos após a sua morte, reconhece: "Conheço a minha sorte. Alguma vez estará unido ao meu nome algo de gigantesco - de uma crise como jamais haverá existido na terra, da mais profunda colisão de consciência, de uma decisão tomada, mediante um conjuro, contra tudo o que até esse momento se acreditou, exigiu, santificou. Eu não sou um homem, sou dinamite".

Um comentário:

Unknown disse...

Por que não? a solidão, como transcendência, é condição básica do super homem, sobretudo por uma força reativa, não ser solitário mas,buscar a sua intersubjetividad.